Ficção


O PLANETA ARRET 

Numa longínqua galáxia, muito mais distante do que a nossa imaginação pode conceber, existe um planeta chamado Arret. Nesse planeta habitam muitos seres vivos, em plena comunhão com a natureza, que é linda, variada, magnífica, e que lhes dá todas as fontes de vida com que eles pudessem sonhar. É mesmo paradisíaco o planeta Arret.

No entanto existe uma espécie, de seres vivos, que estão a colocar em perigo todo esse perfeito equilíbrio e que, paradoxalmente, são os mais inteligentes de todos: Os Sonamuh. Ao longo de muitos milhares de anos os Sonamuh reproduziram-se a um ritmo galopante. Por serem particularmente amorosos e amigos de um bom prazer, os Sonamuh não perdem uma oportunidade para se atirarem ao delicioso acto, que provoca depois o nascimento dos seus descendentes.

Como são muito inteligentes, o que por si só não é equivalente a mais felicidade, foi-se organizando uma minoria de Sonamuh que, além de se julgarem mais inteligentes do que os outros, acreditavam que tinham, como missão, resolver o problema da super população, que ameaçava, pensavam eles, a continuidade da vida dos Sonamuh em Arret.

Surgiu assim uma elite que informou todos os restantes que ia tomar conta deles. Os Sonamuh em geral podiam ficar descansados, focados na sua própria vida, nos seus prazeres quotidianos e no seu bem estar, e ficaram mais felizes ainda porque esse pequeno grupo , os Itanimuli, fazia com que não se tivessem que preocupar com nada.

Como os Sonamuh já estavam muito evoluídos tecnologicamente, os Itanimuli desenvolveram uma espécie de poção mágica para que deixasse de ser possível aos Sonamuh procriarem livremente. Apresentada como o elixir da vida eterna, essa mistura tinha uma espécie de interruptor integrado, que os Itanimuli podiam ligar e desligar, conforme fosse necessário, e que determinava quantos novos Sonamuh podiam nascer, em cada ano.

É claro que os Sonamuh não hesitaram em seguir os conselhos dos Itanimuli porque o que eles mais desejavam era que a sua vida em Arret, cheia de prazeres e alegrias, se prolongasse para sempre. Faziam-se longas filas de Sonamuh por todo o Arret, desejosos por tomar o seu elixir da vida eterna. E que bom que era, não se terem que preocupar com nada, porque os Itanimuli, além de pensarem por eles, garantiam-lhes a suprema felicidade e que tudo ia ficar bem para sempre.

O plano dos Itanimuli ia de vento em popa até que alguns dos Sonamuh correntes começaram a desconfiar daquela magia toda que os Itanimuli apregoavam. Mas esses dissidentes estavam muito dispersos e desorganizados e por isso, os Itanimuli, de início, não se preocuparam com eles. Informaram os outros milhões de Sonamuh que, esses desconfiados, eram um bando de criminosos e que seriam facilmente neutralizados.

(Continua...)



DEIXA A LUZ ENTRAR

A luz do dia entrava tímida, pelas frestas das portadas, e o meu acordar era igualmente leve, saboroso, por ser fim-de-semana, por não haver pressa, por podermos ali ficar. Tu ainda dormias e eu deixei-me ficar sossegada, a olhar para ti, para as tuas pálpebras em vez do teu olhar, para a tua expressão abandonada em vez da atenta atitude, ora séria, ora irónica, mas sempre alerta, sempre pronta. O ambiente perfeito, um momento que por mim parava, ficava assim para sempre. Era impossível sentir mais paz, mais bem estar. Saí daquele abraço noturno, devagarinho, para não te acordar. Aconcheguei-te o edredão e virei-me, já solta, de barriga para o ar, com as mãos atrás da nuca, a olhar sorridente para o teto, como se ele me conhecesse, e pus-me a divagar.

Chego a esta fase da vida e sou uma romântica racional, e se isto soa a contradição, paciência. Mas eu vou tentar explicar. Aquela ideia do romantismo absoluto, de sonhar em encontrar alguém que nos faça feliz... é para esquecer. Não vai aparecer ninguém para nos fazer feliz porque essa pessoa não existe. A única pessoa com essa magna responsabilidade é a própria, por isso quanto mais cedo deixarmos de procurar à volta, melhor.

Li nalgum sítio nas redes, não faço ideia onde e nem referia o autor, um pensamento que me parece genial por ser tão simples e óbvio e, mesmo assim, raramente nos ocorrer. Era qualquer coisa como: "A pessoa com quem vais passar mais tempo durante a tua vida és tu, por isso vê lá se consegues ser o mais interessante possível." Que é como quem diz, somos nós que nos construímos, sozinhos.

É escusado andar à procura, nos outros, das respostas que dependem de nós. Depois, quando temos a sorte de estarmos inteiros e encontrarmos alguém que também está inteiro em si, pode acontecer essa magia da chamada compatibilidade. Ninguém nasce compatível com ninguém, a compatibilidade é uma mistura de desejo e de vontade, só possível entre duas pessoas que querem dar-se porque a ambas lhes sobra de si, e assim, partilhando, recebem, muito mais brilhante ainda , do outro também o reflexo da sua própria luz.

Tu continuavas a dormir, voltei a enroscar-me no teu calor e queria ficar assim, muito tempo acordada, para gozar aquele prazer, mas adormeci, logo a seguir. Quando mais tarde acordámos, já de pouco ou nada me lembrava. É provável que tenha estado a noite toda a sonhar. Levantei-me e abri a janela para deixar a luz entrar.


CONFISSÃO DE UM AFETO MAIOR

Confesso que perdi a conta às noites em que dormi contigo a sério, de corpo presente, ao meu lado. Mas mais perdida é a conta das noites que passei contigo, em sonhos e pensamentos, sem tu saberes, noites igualmente feitas de muitos prazeres. E estas noites também me prendem a ti, não sei se mais se menos do que as noites reais. Essas em que até durmo quase sempre mal, mas em que posso encostar-me toda na tua pele, e enrolar suavemente os meus dedos no teu cabelo, enquanto dormes tranquilo e eu fico acordada a segurar o tempo, a obriga-lo a passar tão devagar como se a qualquer momento pudesse mesmo parar. Por outro lado não gosto de me sentir presa, assusta-me. Por isso digo tantas vezes que quero fugir. Mas fugir de quê, de quem? Na verdade eu só quero fugir da realidade da tua ausência e ir viver no meu mundo imaginado, onde andas sempre ao meu lado. Nunca quis fugir de ti, nem do real nem do inventado, até porque ambos são parte integrante de mim, do passado, do presente e do sonhado.


CONVERSAS DE AMOR

Maria pôs a música a tocar e depois, durante algum tempo, nem a andar nem a dançar, movia-se muito devagar, enquanto cantarolava baixinho. De repente parou e disse:

- Lembras-te quando, há uns anos, me perguntaste o que é que era para mim o amor?

- Só podes estar a gozar - respondeu João a rir, trocista.

- Tu querias saber o que era para mim o amor, num casal, mas eu não percebi e descrevi-te o amor aos filhos, aos pais e ao próximo em geral. Não te lembras? Até me chamaste Madre Teresa de Calcutá.

- Agora lembro-me! - respondeu ele, desta vez mais divertido ainda.

- Continuo sem saber dar uma definição para este tipo de amor. Só sei que é o único amor que carece, além de uma escolha, de um compromisso também.

João endireitou-se no sofá para alcançar um cigarro. Acendeu-o, voltou a recostar-se e disse:

- O único compromisso que interessa é o que estabelecemos connosco, sozinhos, quase sempre na maior solidão. É quando assumimos o que queremos da nossa vida e o que vamos fazer para o alcançar.

- Mas pode acontecer, com muita sorte, quando até o tempo está ajustado dos dois lados e as estrelas estão também todas de feição, comprometermos-nos simultaneamente com nós próprios e com alguém, que nos quer e a quem queremos o maior bem, ou não?

- O teu romantismo nunca se deixa abater, pois não?

- Isto não tem nada a ver com romantismo, mas pode acontecer encontrarmos alguém que só amplia o nosso prazer de viver e que até enriquece o nosso compromisso com a própria vida. Alguém que não queremos perder e por isso querermos estabelecer, com essa pessoa, uma espécie de garantia em como ela não vai desaparecer.

- É romantismo sim! Talvez isso possa acontecer mas é uma raridade, acontece mais é nos filmes. Por outro lado não te faz mal nenhum sonhar com o quase impossível, tentar alcançar a perfeição na vida, como quem tenta tocar no luar, mas, e isto tu já devias saber, um compromisso com outra pessoa não é garantia de coisa nenhuma.

Maria, que durante a conversa continuou sempre a deambular pela sala, escolheu outra música, serviu-se de mais um pouco de vinho, acendeu um cigarro mas, agora, já não cantarolava. João, que a conhecia tão bem, já estava a contar que a conversa não tivesse ficado por ali. E não se enganou:

- O teu pragmatismo deu-me uma ideia para definir o amor.

- Pragmatismo e amor? Que mistura improvável. Diz lá, estou curioso!

- Amor é quando dois seres, depois de se terem  atraído e desejado, mantém a chama e escolhem livremente ficar um com o outro. Aí constroem, com a mesma vontade, uma compatibilidade feita, acima de tudo, de cumplicidade.

- Então e o tal compromisso que ainda há pouco era essencial, onde é que fica?

- Na cumplicidade. O compromisso com outra pessoa chama-se assim.

- A ideia até que é boa mas vê lá se consegues dizer isso de uma forma mais sucinta porque, para definição, tem palavras a mais.

E as gargalhadas cúmplices que ecoaram então, na sala, deram a conversa por interrompida. Só a música continuou a tocar, afinada como a compatibilidade dos dois, depois de tantos anos e de muito ter sido ensaiada.


CONVERSAS DOS NOSSOS DIAS

No aconchego de casa, no perfeito equilíbrio de estarem simultaneamente juntos e cada um no seu mundo, a partilharem a música de fundo e a ler cada um o que calhava, o silêncio das palavras ditas foi quebrado:

- Hoje em dia já ninguém pode entrar num avião sem ter feito o teste ao vírus - disse ela, muito séria e grave.

- E daqui a pouco tempo ninguém o poderá fazer se não estiver vacinado - respondeu ele, sarcasticamente sorridente.

- Agora só falta dizeres que, na fase seguinte, só viajas se estiveres com o chip integrado - retorquiu ela, sem vontade sequer de sorrir, muito menos de rir.

- Não vou dizer isso porque não sou dado à futurologia, muito menos a teorias do pânico, e já me bem basta o surrealismo do dia-a-dia em que o mundo vive atualmente, a aceitação do absurdo veiculada pela comunicação social, abrangendo, obviamente, o infinito manancial de desinformação que recebemos das redes sociais - disse ele.

Caiu depois um silêncio reflexivo e prolongado.

- Mas tu já reparaste? - voltou ela a arrebitar a conversa - Ao longo da história da humanidade, foram sempre os não alinhados, até gosto mais de chamar-lhes desalinhados, que fizeram as perguntas desconfortáveis? E que foi através dessas perguntas "malucas", mesmo que fosse muito tempo depois, que acabaram por surgir respostas válidas a questões aparentemente já fechadas e arrumadas?

- Os loucos dos presentes passados foram os visionários dos futuros por eles imaginados, mas agora parece que nos faltam loucos geniais, não só com perguntas mas com respostas imediatas...

- Porque parecemos convergir para um beco sem saída? - rematou ela.

- Sabes que eu não sou como tu, e que não me lembro de quase nada, mas sei que algum pensador já escreveu que não podemos carregar aos ombros todos os males do mundo, sob pena de morrermos com o peso tanto do absurdo generalizado como do sofrimento alheio, e entrarmos em colapso por, pelo menos aparentemente, não podermos fazer nada.

- Há uma liberdade que espero não perder antes de morrer que é o que posso pensar e dizer e o que posso sentir e, se me apetecer, o que posso calar e ficar apenas a observar.

Recostaram-se mais um ao outro, naquele imenso sofá habitado por inúmeras almofadas sempre em desalinho e também por uma já longa história de tantos encontros e desencontros de ideias desconjuntadas, e ele disse-lhe baixinho, como quem conta um segredo ao ouvido:

- Tu nunca te vais calar, a esse nível de previsão do futuro consigo eu chegar.

E com essa tirada sacou-lhe de dentro um sorriso feito de cumplicidade e de paz.


CONVERSAS AO SERÃO

Tão bom aquele momento do dia em que já é noite, em que todos os afazeres estão cumpridos, em que já ninguém espera nada de nós e nós de ninguém, e que nos podemos refastelar no sofá, a ouvir música, a ler, a fazer seja o que for mesmo que seja não fazer nada... até que ouvimos uma pergunta:

- Já imaginaste como seria se o que pensamos fosse visível para todos com quem nos cruzamos?

Onde é que ela vai buscar estas temáticas? - pensei - e respondi:

- Nunca pensei nisso mas seria provavelmente o fim da Humanidade tal e qual a conhecemos.

- E o susto de encarar a loucura generalizada que se anda a passear por aí sem ninguém saber?

- Começando por nós, não?

- Claro, não estamos fora da equação. Por mais transparentes que procuremos ser, todos temos, de vez em quando, pensamentos desvairados e inconfessáveis.

- Isso quer dizer, para já, que tu tens e assumes.

- E tu, mesmo que não confesses, também tens pensamentos que não contas a ninguém.

- É verdade mas, felizmente são muito esporádicos e dou logo por eles, quando me assaltam, graças ao meu censor automático que me alerta com a mensagem "Tu não estás a pensar nisto, pois não?"

- Partilha lá um desses pensamentos desvairados...

- Não posso porque nem me ficam gravados na memória, senão teria um ou outro que concerteza poderia revelar.

- Sabes muito mas não acredito.

- Estou a falar a sério e, pelo teu comentário, tu sim tens para aí gravados pensamentos inconfessáveis que agora, quem sabe, talvez possas partilhar.

- Inconfessáveis não se partilham.

Caiu um silêncio dos bons, daqueles que se sente que são feitos de reflexão, de amadurecimento das ideias. Passados uns minutos, ela não resistiu a ir um bocadinho mais fundo:

- Voltando à ideia inicial, Tenta imaginar o efeito se um dia toda a gente acordasse com os pensamentos a sair-lhes pela boca fora.

- Muitas amizades iriam pelo ar e, seguramente, muitas inimizades também.

- E a sociedade, tal como existe, iria acabar, não iria suportar que, de repente, todos fossemos como as crianças e como os loucos. A sociedade implica muito cinismo e hipocrisia.

- Seria uma revolução.

- Ou até o fim da nossa civilização.

Após uma nova pausa ele não resistiu:

- Só para fazermos um pequeno teste, "en petit comité", podias partilhar uma das tuas loucuras que eu desconheça...

- Não me parece. Já conheces muitas delas e tenho que guardar algum mistério senão isto perde a graça toda.

-Vamos para a cama então... quem sabe te consigo demover.

- Não perdes nada em tentar - respondeu ela, com malícia.



CONVERSAS À BEIRA-MAR

- Uma pessoa pode sentir-se plenamente feliz num cinzento subúrbio de uma qualquer cidade e absolutamente miserável num lugar paradisíaco...

- E isso vem a propósito de quê?

- De nada. Estava a pensar que o bem-estar não depende do cenário e, já agora, vou mais longe, depende muito pouco dos que estão à nossa volta.

- Obrigado... pela parte que me toca.

Entreolharam-se, sorriram, e voltaram a olhar para o mar num silêncio cúmplice, só quebrado pelo som das ondas que vinham morrer aos seus pés.

- É maravilhoso ter alguém que ouve as nossas divagações, não te menosprezes.

- Continua então...

- O que eu estava a pensar é que, na verdade, estar bem só depende do sentimento que se destaca de todas as emoções que nos assaltam, a cada momento.

- Tu devias escrever um livro mas como não escreves, fala que o teu falar tem graça.

- Acho que não vou dizer mais nada...

- Disse alguma coisa que não devia?

- Não. Quando voltarmos vou escrever no meu caderno que antes de mais nada, antes dos outros, antes de pensares onde estás, acorda e ama-te a ti mesmo. Reconcilia-te com o que sentes, com o que pensas, com os teus erros, medos e frustrações, com o que te vai na alma e no coração. Se for preciso grita, se for preciso chora e depois, quando a paz chegar, absorve o que te rodeia, começando por quem te ama, e continuando com tudo o resto, que é a vida que está aí, sempre pronta, à tua espera, para ser vivida intensamente.

- Mas o sossego de não pensar, nem sequer no que se está a sentir, o deixar fluir, também pode dar muito prazer e bem-estar. Ainda noutro dia falámos sobre isso.

- Mas só resulta no momento, não na continuidade. O truque é manter o controlo permanente do que sentimos. Ao princípio pode parecer complexo e exigir muito esforço e disciplina mas depois é um processo natural.

- Tu abres a boca, a caixa das complexidades abre-se e nunca sabemos como a vamos fechar.

- E eu a pensar que o que estava a dizer era para simplificar.

O sol já estava a mergulhar no mar.

- Estou a ficar com frio.

- No corpo, na alma ou no coração? Seja onde for, queres que eu te aqueça?


CONVERSAS DE MADRUGADA

- À medida que os anos passam ficamos mais despojados, mais leves, mais livres e por isso mais felizes. - disse ela sem se mexer, sem sair do cálido abandono daquele encosto, sem sequer abrir os olhos.

- Despojados em que sentido?

- Desvalorizamos cada vez mais o ter e cuidamos com cada vez maior atenção o ser.

- Quem? Nós?

- Não só nós, as pessoas em geral.

- Lá estás tu a generalizar para o mundo aquilo que sentes. Estás enganada. Muita gente, por mais anos que viva, nunca deixa de se focar no que tem e em ter mais, mesmo quando tem muito mais do que o suficiente para o comum dos mortais como nós, que até achamos que temos tudo.

- Mas para quê?

- Sei lá para quê. Até certa altura para si próprios e depois para deixarem heranças, não faço ideia de onde lhes vem a motivação mas é assim.

- Que desperdício de vidas.

- Para ti. Se calhar para muita gente a tua forma de viver é que é um desperdício.

- Não estou a perceber...

- Cada pessoa valoriza na vida o que entende importante. Uns dedicam-se a acumular património e poder, outros colecionam afetos, memórias de momentos, emoções e pensamentos. É natural que uns não entendam as motivações dos outros.

- A língua portuguesa também não ajuda a que as pessoas entendam o que importa na vida. Não se diz de alguém rico que tem muitos bens? Não é disparatado associar o conceito de bem às coisas?

- Sabes o que é que me parece disparatado? É estarmos a ter esta conversa a esta hora.

- O bem da vida é o amor que somos capazes de dar e receber. Tudo o resto é acessório, secundário, cenário, paisagem...

Ele virou-se, tapou-lhe a boca com um beijo demorado e deixaram-se ficar num abraço aconchegado, até de manhã.


CONVERSAS NO TERRAÇO

- Em que é que estás a pensar?

- Em nada.

- Isso é impossível. Estamos sempre a pensar nalguma coisa.

- Eu consigo não pensar em nada e tu devias tentar também.

- O que é queres dizer com isso?

- Quero dizer que às vezes é bom desligar, deixar fluir e tu estás sempre a pensar, sempre atenta, sempre com dúvidas e perguntas, a qualquer hora do dia, nem sei como aguentas. Nunca te cansas?

- Na verdade não me canso porque sou assim sem esforço nenhum. O que me requer um grande esforço é desligar... talvez por isso valha a pena seguir o teu conselho e tentar.

Fez-se silêncio durante alguns minutos enquanto o sol se escondia atrás da vinha e o calor abrasador da tarde se temperava finalmente com uma brisa suave.

- Diz-me lá, mesmo a sério, estiveste este tempo todo sem pensar em nada?

- Qual tempo todo? Desde que te calaste?

Risos.

- Desta vez estive a pensar na nossa conversa e não sei porque é que te disse que devias tentar não pensar em nada. Se calhar o mais importante é que cada um use a cabeça como mais gosto lhe der.

- Quando eu disse que não faço esforço nenhum em estar sempre ligada não quis dizer que me dê mais gosto assim até porque nem sei como é ser de outra maneira... e agora que falámos nisto estou curiosa.

Ficaram de novo em silêncio, desta vez mais prolongado. Ouviam-se só as cigarras e o céu, pintado de um azul cada vez mais escuro, manchado de cor-de-rosa e laranja, convidava à contemplação.

- Se calhar as pessoas que pensam menos são mais felizes. Absorvem melhor tudo o que as rodeia em vez de serem absorvidas pelo que se passa na sua cabeça.

- Se calhar a felicidade depende é do que têm na cabeça, tanto os que pensam menos como os que pensam mais. E se fossemos fazer o jantar?

- Vamos.

Levantaram-se já iluminados de estrelas e de luar, deram o braço e um beijo e entraram em casa.


A QUALIDADE DE SER

- Qual é a qualidade humana mais importante para ti? - Perguntou ela, quebrando aquele silêncio cúmplice em que tantas vezes se deixavam cair, cada um absorvido nos seus pensamentos, saboreando apenas o conforto de se sentirem perto um do outro.

- Assim, de repente? Talvez a coragem...

- A coragem?

- Sim. As pessoas confundem coragem com não ter medo de nada e eu estou a falar da coragem a sério, da coragem de ser fiel a si próprio, de dizer sempre a verdade, de defender quem não está presente, de assumir ideias e convicções, de lutar pelos ideais. Essa coragem.

- Que giro, eu tinha pensado em integridade e depois de descreveres a coragem até parece que os conceitos se fundem, não é ?

- E fundem. As palavras podem parecer estanques mas quando definem conceitos tornam-se muito abrangentes e mistura-se tudo. Daí a riqueza da linguagem e daí também muitas vezes as pessoas se desentenderem, apesar de estarem de acordo no essencial, por pensarem as palavras com cargas e conotações diferentes.

- E ter carácter não será a qualidade mais importante?

- Dentro do carácter então cabe tudo, a coragem, a integridade, a honestidade, a dignidade... e até a falta de tudo isso quando o carácter é mau.

- Quando te fiz a pergunta inicial tinha estado a pensar que uma boa pessoa, para deixarmos de lado palavras com conceitos muito dilatados, é aquela que pode juntar no mesmo espaço todas as pessoas que lhe são próximas e queridas e não sofrer qualquer tipo de constrangimento por elas falarem umas com as outras, percebes?

- Uma pessoa que não se modifica nem com o cenário nem com a plateia, portanto.

- E que não precisa de capas e filtros, que não anda na vida a fazer de ator ou palhaço.

- Estás a ver? Voltamos à coragem. É precisa muita coragem para sermos sempre nós mesmos.

- Espera aí que eu estou demasiadamente sóbria para esta conversa e vou ali buscar uma garrafa de vinho e já continuamos.

- Traz dois copos então para evitar ficar um sóbrio e o outro não.

- Volto já! Vai pondo aí uma música a tocar que este fim de tarde vai animar.


NOUTRA DIMENSÃO

Emocionante foi teres vindo assaltar o meu sonho. Andávamos de noite perdidos mas não queríamos saber porque um com o outro estávamos encontrados. Emocionante foi também como nos beijámos e tocámos e, iluminados de estrelas e embalados de silêncio, nos fundimos num tempo e num espaço que não conhecíamos. De um sonho assim teria preferido não acordar e fiquei depois de olhos fechados, aconchegada nas almofadas, de ténue sorriso posto, a tentar voltar para lá mesmo sabendo que não era possível porque já não existia esse caminho.

Pensei que te queria contar o meu sonho mas depois lembrei-me que já não me podes ouvir. Escrevi então e essas sensações, essas verdadeiras vivências, ficaram arrumadas ao pé de tantas outras memórias e transformaram-se em passado, nesse passado cada vez maior, onde tu vives também, para sempre, enquanto eu viver, enquanto eu tiver presente e memória para não te voltar a perder.


UMA ESPÉCIE DE CARTA DE AMOR

Dizem que para escrever é preciso ter coragem... eu acho é que é uma grande cobardia, dizer tudo o que nos passa pela cabeça, protegidos pela distância, no tempo e no espaço, que a própria escrita nos dá.

Ao mesmo tempo parece-me que já dissemos tudo o que sentimos essencial dizer, um ao outro, e, se eventualmente alguma coisa ficou por dizer, será seguramente tão óbvia que não faz sentido ser reduzida a palavras que, por mais eloquentes que sejam, prendem e atam, sempre, qualquer divagação que nos assalte.

Há emoções e sentimentos que ficam melhor por dizer e isto não tem nada a ver com falta de sinceridade ou proximidade, pelo contrário, são conceitos que pertencem à dimensão onde sobram as palavras, àquele estado de entendimento total, onde os gestos, os olhares, os sorrisos e os acenos nos inundam de um prazer extremo, inerente à partilha plena dos momentos, tão preciosos e raros, tão intensos e, por isso, dificilmente redutíveis a palavras.

Mas deixa-me ser contraditória, isto é tudo muito bonito mas a verdade é que, mesmo assim, às vezes, apetece-me dizer-te, dizer-te não, gritar-te que te amo. Amo-te pelo que me fazes sentir e é provável que te ame de uma forma egoísta.

Amo-te porque mesmo quando estou sem ti continuo a sentir-te presente, enquanto viajo pela memória do que vivemos e fizemos juntos e do que dissemos um ao outro, ou viajo pelo que imagino ainda vamos viver, fazer e dizer... é-me, por isso, agora, impossível imaginar a vida sem ti.

Amo-te porque tu és o meu amigo imaginário, tal e qual como têm as crianças, com a vantagem de existires mesmo. Estás sempre comigo, levo-te para onde vou, rio-me contigo, faço-te perguntas e invento as tuas respostas, múltiplas, claro, mas o que é certo é que te sinto sempre presente, estejas tu onde estiveres fisicamente.

Apetece-me ainda dizer-te que quero viver muitos anos, mas que tu vivas também, porque eu não ia suportar ficar na vida sem ti, sem este gozo de poder partilhar plenamente o imenso prazer de viver.



DISTANCIAMENTO

Quando o despertador tocou parecia-me ter acabado de adormecer. Ele já tinha saído.

O último serão arrasou-me e passei a noite às voltas, a remoer o nosso distanciamento cada vez mais evidente.

Na véspera ele tinha chegado tarde para jantar, tenso como quem vem para a última e tardia reunião de trabalho do dia. Jantámos a forçar banalidades para evitar cair no silêncio ou em algo pior e sentámos-nos depois diante da televisão, sem ver, distraídos também um do outro, absorvidos cada um nos seus pensamentos.

Fomos para a cama passada uma hora, talvez, e ele abraçou-me e pediu-me desculpa, eu não respondi, tive medo de perguntar "desculpa de quê?".

Levantei-me, assim, sem ânimo e já atrasada para despachar o duche e o pequeno almoço, à pressa.

Assim que fechei a porta de casa dei com um pé num objecto que deslizou pelo patamar, fui ver o que era e gelei, era o telemóvel dele. Gelei porque me conheço tão bem, porque senti que não ia ser capaz de resistir a procurar no telemóvel as respostas que me faltavam.

Peguei no telemóvel, com um cuidado exagerado, como se temesse quebrar alguma magia, como se já sentisse estar a invadir o que é privado, só por lhe pegar. Bateria fraca. Três chamadas não atendidas. Bloqueado.

Saí do prédio e o ar frio da manhã não apaziguou a minha ansiedade. Quereria saber a verdade?

Com a boca seca e coração descompassado cheguei à estação do metropolitano, mesmo a tempo de o apanhar e, antes, deixar cair o telemóvel dele para a linha, como quem se liberta de um peso extremo.

Não confessar isto a ninguém ajuda-me a aceitar que existam segredos nos outros.

A distância tem a ver com dois pontos. A proximidade também. 


DESENCONTRO

Inês acordou devagarinho, com a luz incerta e periclitante, que as frestas das persianas deixavam passar, a poisar nas suas pálpebras, ora sim ora não.

Levantou-se ainda sonolenta, preparou o café e a cada gole era maior a vontade de virar a página e dar uma reviravolta à sua vida.

Tomou um duche, vestiu o que tinha à mão, fora do roupeiro, meio usado, e saiu de casa sem destino, à procura de inspiração.

Calcorreou as ruas conhecidas como as palmas da mão e sentou-se depois num destes bancos que agora estão por toda a parte.

Reparou, pouco depois, num papel rasgado em dois, no chão. Chamou-lhe a atenção estar muito limpo, como acabado de poisar ali. A curiosidade fê-la esticar o braço para apanhar os dois pedaços de papel.

Era um bilhete de amor. Ainda há quem manuscreva bilhetes de amor? Será que quem o recebeu o rasgou e deitou fora? Não.

Preferiu imaginar que quem o escreveu se arrependeu. Mas, se assim fosse, rasgava-o só em dois, e atirava-o para o chão, no meio da rua? Não.

Fosse como fosse, um bilhete de amor rasgado é uma história desencontrada, como a sua, até agora.

Dobrou cuidadosamente as duas partes do bilhete como se assim voltasse a ser um só e guardou o seu achado no bolso do casaco, como um tesouro.

Nessa noite, assim que deitou a cabeça na almofada, chorou. Chorou com saudades do tempo perdido que passou violentamente depressa e que não conseguiu agarrar. Enquanto as lágrimas espessas escorriam sem que as conseguisse evitar, dizia a si mesma para tentar parar com aquilo, mas, sem grande convicção... na verdade deixou-se chorar, muito tempo, até se cansar e adormecer, por fim, num sono apagado e exausto, desta vez sem sonhos.



O MAIOR AMIGO

Sara usou-o. Socorreu-se dele para conseguir voltar a pôr-se de pé, para reencontrar o seu equilíbrio e a sua essência, tanto tempo escondida, e é mais do que evidente que conseguiu, graças a ele também.

Esses dias que partilharam, como acontece sempre quando o tempo é feliz, passaram, como um sopro. Enquanto se adaptava a si própria - à pessoa que sempre esteve ali, latente, mas que Sara já mal conhecia, por ter existido tanto tempo debaixo de várias camadas, formadas pelos seus hábitos e pelas expectativas dos outros - foi com ele que se sentiu melhor do que sozinha, foi mais fácil abrir-se com ele do que consigo mesma, embora tivesse que enfrentar os mesmos medos e erros, as mesmas emoções e contradições.

A verdade é que nesses dias a desconhecida de Sara foi ela própria. Ele era a mesma pessoa de sempre, estava ali, como um rochedo, inalterado e autêntico.

Toda a vida Sara se sentiu atraída por essa autenticidade nele, essa falta de camadas. Lembrava-se dele sempre assim e, agora, tinha a certeza ter sido isso que a levou na sua direção, naquela altura crucial da sua vida, como quem vai em busca de si própria, numa viagem até ao que é essencial e onde só podia encontrar alguém genuíno e que a conhecesse profundamente. Alguém capaz de lhe dizer, não só o que ela gostasse de ouvir mas, principalmente, o que ela não quisesse ou estivesse preparada para aceitar. Alguém que não conseguisse enganar como conseguira enganar a si mesma.

Com ele, Sara não tem que fazer qualquer esforço, pode dizer-lhe tudo, ouvir tudo, seja de que maneira for... e ninguém a faz rir, sobretudo de si própria, como ele.

Ele é o seu maior amigo, o seu porto de abrigo.


PONTE FINAL

Fui apanhada, de chofre, com a surpresa da chocante notícia.

O António suicidou-se, atirou-se da Ponte 25 de Abril, de madrugada. "Sabes que se atiram centenas de pessoas desta ponte, todos os anos?" perguntou-me a Maria ainda durante o telefonema em que me deu a trágica notícia. "Não divulgam estes dados para não dar ideias a outras pessoas para fazerem o mesmo", continuou. Entretanto eu sentia-me a mergulhar muito lentamente num estado de choque, incapaz de manter qualquer tipo de conversa, muito menos uma conversa trivial sobre estatísticas e comunicação social. O mais educadamente possível, tentei abreviar o remate da conversa para desligar o telefone.

A minha pressa era para continuar ali sentada, em silêncio, quieta, o tempo que fosse preciso... não tardou até começar a chorar, lágrimas quentes, grossas e silenciosas, feitas de recordações, impotência e tristeza.

Depois recapitulei, mentalmente, os detalhes que me tinham sido relatados pela Maria. Foi a casa da ex-mulher, na noite anterior, e pediu para dar um beijo ao filho, que já dormia. Depois foi a casa e enviou emails, um para o irmão, outro para a ex-mulher e outro para a sua sócia. Saiu então, apenas com a chave do carro e o cartão de cidadão, sem chaves de casa ou telemóvel. Guiou até meio da ponte, parou o carro deixando os quatro piscas ligados e o documento de identificação no assento do condutor e atirou-se para a escuridão e para o vazio, não numa tentativa de suicídio, a ter a certeza que ia conseguir deixar para trás todo o sofrimento, angústia e solidão que a vida lhe tinha dado.

Sabia que iam começar os preparativos para o funeral, sei como são estes encontros dos entes queridos, tardios e esquecidos... "Ana, vais?", "Vou". Mas não fui.



REENCONTRO

Entrou no café e sentiu o chão desaparecer debaixo dos pés. Ali estava ela, sentada sozinha a uma mesa de canto, junto à vidraça, com uma chávena de café esquecida e o olhar perdido sobre a rua, agitada, que contrastava com a sua serenidade.

Ela não o viu entrar e ele ficou sem saber se preferia desaparecer ou ir ao seu encontro e interromper tanto tempo de distanciamento absoluto.

Com uma velocidade alucinante passaram-lhe pela memória fragmentos da vida que partilharam, tantos anos antes. Sentiu fisicamente o calor daquela cumplicidade nunca mais alcançada, saudades daqueles beijos e abraços, das conversas e dos risos, e o temor dos silêncios e dos sonhos afinal não cumpridos, que se seguiram.

Aproximou-se e não disse nada. Esperou que o seu olhar poisasse em si e, quando ela o viu, abriu-lhe o seu irresistível sorriso de sempre e fez-lhe um gesto para que se sentasse na cadeira vazia à sua frente, como se esse encontro tivesse sido combinado e expectável.

Ele sentou-se, nervoso, com o coração capaz de lhe saltar da boca se se atrevesse a abri-la para dizer, fosse o que fosse.

Ficaram depois calados a olhar para dentro dos olhos um do outro, a tentar recuperar o tempo perdido, sem vontade nem coragem para reduzir a palavras o turbilhão de emoções que assolava ambos, enquanto absorviam, tanto o momento presente como a viagem ao passado, e tanta vida vivida, entretanto.

Nenhum dos dois parecia saber como construir essa ponte que ambos sentiam urgência de começar a erguer... "apetece-te caminhar?" perguntou-lhe ela... levantaram-se e saíram para o anoitecer, sem rumo certo. Ele deu-lhe o braço, ela aconchegou-se e ficou implícito que teriam toda a vida para falarem mas, por agora, sobrariam as palavras.


EVOLUÇÃO

"Agora só nos falta a oportunidade de extravasarmos, tudo o que temos vindo a acumular, para cima um do outro. Mal posso esperar." escrevi-lhe no Email.

Depois continuei: "Esta antecipação do que nos espera é das sensações mais excitantes que eu tive na vida. Confesso que não me lembro da última vez que me senti assim, aliás, eu sei que nunca me senti assim porque há uma imensa carga de novidade nisto tudo.

Hoje sou uma pessoa que nunca fui porque sou feita de tudo o que vivi até este momento. No passado estava a construir quem sou agora e, agora, estou a construir quem hei-de ser, no futuro. Vamos sendo, cada vez mais, seres mais complexos porque cada vez temos mais bagagem de experiências e sensações e é daí que vem essa carga de novidade.

Apesar de sermos sempre a mesma pessoa ao longo da vida, estamos em constante mutação, ou evolução para não utilizar um conceito tão radical. O nosso percurso e vivências vão-nos moldando e eu acredito verdadeiramente que para melhor, desde que saibamos digerir a vida pela qual vamos passando, juntando tudo o que nos foi esculpindo como pessoa, encarando com muita leveza o que nos magoou e com maior desapego, ainda, o que nos faz sentir nostalgia.

Estou finalmente, e pela primeira vez, a viver totalmente focada no momento presente. Não me pesa o passado nem me angustia o futuro. Como estou muito consciente disto, vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para não me voltar a distrair do que é essencialmente importante: viver intensamente cada dia, todos os dias e tenho a certeza que vou conseguir.

Agora sim, totalmente renascida das cinzas, qual Fénix, deixa-me dar-te de volta tudo o que me deste. Tu mereces. Eu também."


AMOR (PER)FEITO

Sou louca por ti desde que me lembro de nós.

Apesar desta paixão ser violentamente intensa e agora também descaradamente assumida, por umas razões ou por outras mas, principalmente, por termos andado quase sempre desencontrados na vida, foram escandalosamente poucas as vezes que tivemos a oportunidade de chegar à mesma cama, ao mesmo tempo.

O sexo, não sendo a causa da intimidade é determinante no seu efeito, é o colmatar de tudo o que aconteceu antes, conjugando a sintonia das conversas e dos silêncios, dos olhares e dos sorrisos, com aquela atracção que não se explica mas que sabemos sempre se existe, por mais que se tente disfarçar.

Sejamos realistas, encontrados já estávamos nós, muito tempo antes dessa última noite. Depois de tantas conversas , ao vivo e à distância, tanta música que nos demos, ao partilharmos as que sempre nos tocaram aos dois, só nos faltava mesmo voltarmos a por as mãos um no outro, para sentir e confirmar que também na pele nos encaixávamos assim, tão plenamente.

Quando finalmente caímos na mesma cama, foi o que foi. Muito bom. Voraz, com o descontrolo ideal, muito às apalpadelas, literalmente, naquele equilíbrio precário de não querer estragar nada pelo caminho e, ao mesmo tempo, querer chegar o mais longe possível, às estrelas e mesmo para além delas.

Noutro dia dizias-me que não sabes o que são conversas sexy. Conversas sexy são, por exemplo, esta, ou aquelas conversas e trocas de mensagens, carregadas de erotismo, em que ansiosamente antecipávamos aquela nossa noite juntos. O erotismo, nas conversas, não é obrigatoriamente o que é dito ou escrito, é, muitas vezes, o que fica por dizer mas subentendido, o silêncio, as pausas, o estado de espírito em que ficamos à espera duma resposta do outro.

Sabes que mais? Quero-te mais, muito mais! 


CAMINHAR

Quando Vera chegou à praia, perto das dez da manhã, apanhou a maré baixa, quase no limite.

A magia da maré baixa é tornar a praia imensa, dando-nos a sensação de estar praticamente deserta. Vai crescendo lentamente aquele areal duro, liso e brilhante, que antes estava escondido, onde os nossos pés são acariciados com tímidos banhos de espuma, intermitentes, da fraca ondulação que ali vem morrer, sem alarido, devagarinho.

Vera aproveitou para ir passear à beira mar mas, desta vez, levou música consigo, ao contrário do que é habitual. Normalmente caminha a ouvir o mar e guarda a música para quando fica deitada, a deixar secar a água salgada na pele e a evitar ouvir conversas alheias que, na praia, raramente são fonte de inspiração.

Vera sabe que isto de passear na praia pode não substituir psicanálise nem meditação mas serve muito bem para limpar a cabeça das impurezas; não serve para não pensar em nada, não pensar em nada só lhe irá acontecer quando morrer e aí vai ter toda a eternidade para ficar assim, vazia e fria, sem pensamentos nem emoções. E, diga-se de passagem, não a atrai nada essa ideia, por mais sossego e paz que esteja inerente a esse cenário.

Caminhar ao sabor do acaso, ao ritmo que calhar, serve para pensar bem, pôr as ideias no sítio e soltar o que está a ocupar espaço e não presta para nada. Com a banda sonora certa, então, esse lixo tóxico vai-se soltando sozinho... a cada compasso, da música e do coração, vai-se libertando uma porção desse peso morto, para o espaço.

Esta caminhada foi uma viagem maior, por dentro e por fora. Embalada pela música, Vera deixou-se levar e só voltou a si, e deu meia volta, quando reparou na paisagem desconhecida à sua volta, nunca vista antes, em tantas caminhadas anteriores. De vez em quando sabe bem ultrapassar os limites que nos vamos impondo, sem darmos por isso.


TEMPO

Deixem-me ficar aqui a contemplar este mar de gente que tem pressa de chegar. Gente que anda contra relógio, numa azáfama angustiante de atraso permanente.

Porque é que existem tantas pessoas sem tempo? Enchem a vida de quê? Que ilusão de plenitude trazem os dias carregados de horários impossíveis?

A ilusão de uma vida cheia, será?
A ilusão de que a vida é o destino e não o caminho, talvez... Esquecidos que no fim não existe mais vida... Nem tempo... E não podemos voltar para trás.

O tempo não encolhe nem estica.
As horas e os minutos são iguais para todos,
mas existem poucos com tempo para tudo e tantos sem tempo nenhum.

"Queres ir jantar? Ao cinema? Passear? Conversar? Namorar?".

"Não tenho tempo".

"Então nem vale a pena perguntar se queres vir fazer nada comigo... sonhar, deixarmos-nos estar, só a respirar e a olhar para o mar, ou para as estrelas ou apenas mergulhar no olhar um do outro até perdermos o pé..."

Parar, de vez em quando, é preciso.
Sentir, apenas, cada compasso do coração, sereno, a pulsar. O tempo não pode parar mas eu posso parar no tempo. Como se o detivesse na mão, para absorver o momento.

Parar não é perder tempo, é encher o tempo da vida feita de emoções, sentimentos e partilhas que se eclipsam nas pressas e correrias.

Se a vida é feita de tempo, porque gastamos a vida sem tempo para gozar o prazer de viver?

Deixem-me ficar aqui sossegada, a pensar, a sonhar, a sentir o tempo a passar, devagar. 

© 2017 Madalena Lemos Bastos. Todos os direitos reservados.
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