Memórias


JARDIM DA ESTRELA

INTRODUÇÃO

À procura da Paz e de respostas. Será tudo imaginação, aquilo a que chamo realidade? A realidade é a percepção de cada um, do Mundo, da Vida, do todo que os rodeia.

Vivo num mundo à parte, só meu, feito de sonhos e de imaginação. Sonhos que agora tenho, parados, cancelados no tempo, mas não esquecidos. Imaginação muito apagada, que se tolhe a si própria, tudo isto graças à medicação, brutal, a que tenho sido sujeita, vai para dois meses, já.

Voltei hoje ao Jardim da Estrela, para meditar, e escrever é a minha forma de o fazer, pelo que acredito que vou ser capaz de ultrapassar este interregno de escuridão, porque aqui estou eu. Antes de entrar no jardim, fui à Basílica, aquela a que chamo minha, não só por ser tão bonita, mas também por ser da Estrela, que espero me venha iluminar, nesta fase tão difícil, da minha vida.

Na verdade, nem me devia queixar de nada. Difícil é apenas não conseguir escrever, além destas pobres linhas , neste caderno que trago sempre comigo, na esperança de recuperar a vontade de escrever histórias, memórias, ficção, não prosa, e outras fantasias que também trago comigo, as puras divagações sobre a realidade que sinto.

Quando Abril acabou, entrei numa espiral de um esgotamento nervoso, deixei a vida considerada normal, e entrei num reino da mais pura solidão. Solidão por não poder partilhar, integralmente, tudo o que pensava e sentia, genuinamente, até acabar naquele estranho hospital, na cidade de Cadiz, aonde fui parar levada pelo meu novo Amigo Inventado. Coincidiu este estado de espírito, com o final de uma longa etapa de vida, de outro Amor Inventado, mas este de carne e osso, ao qual dediquei o meu coração e toda a minha atenção, até perceber que ali, afinal, não havia mesmo nada, para além da minha teimosa imaginação.

Aqui sentada nesta serena esplanada, no jardim, onde as vozes dos outros, de fundo, se confundem com o chilrear dos passarinhos, que aqui vivem felizes. E hoje também me sinto feliz. Pela primeira vez, desde Abril, não me obriguei a escrever. Senti novamente esta imensa vontade, de escrever uma história. Desta vez uma história que já disse a várias pessoas, do meu núcleo afectivo, que nunca iria escrever. Nunca digas nunca, esta eu já tenho a obrigação de saber, e uma coisa é escrever, outra, muito diferente, é publicar. Posso perfeitamente escrever uma história , sem a dar a ler a ninguém. Não sei se esta história será lida por mais alguém. Por enquanto penso que não. O que para mim já me parece óbvio é que todos os que comentaram "o desaparecimento da Madalena", não faziam a mínima ideia, nem do que falavam, nem do caminho que atravessei.

Vim aqui parar vinda de um sonho, sonho que senti como real, e que teve tanto de sublime como de maior pesadelo. Acredito que vir aqui, e começar a escrever com vontade, é mais um fim de uma etapa e, obviamente, o principio do resto da minha vida. O resto da minha vida vai ser feito de silêncio, ou da máxima compreensão, não tenciono perder mais tempo com aqueles que julgam, nem com o que pensam de mim. Como já escrevi, e vi escrito, porque não fui eu quem inventou, o que os outros pensam de mim, não me diz respeito nenhum. Nunca me dedico a julgar a vida dos outros, pelo que não há razão nenhuma para me condicionar aos que se dedicam a fazê-lo, sobre mim, sobre aquilo que faço, ou sobre aquilo que deixo por fazer.

Desde que comecei a escrever, faço a apologia à Liberdade. Não seria lógico não lutar pela minha, que não prejudica ninguém, e que a mim faz tanto bem.

6JUL2023


VIVA A MINHA MÃE

Hoje a minha Mãe completa uns esplêndidos 89 anos. Chama-se Guida, e coitada, toda a vida teve que dizer, Guida mesmo Guida, porque toda a gente, assim que ela se apresentava, começava a trata-la por Margarida. Para mim sempre foi fácil saber a idade da minha Mãe, porque fazemos anos no mesmo mês, com 30 anos de diferença. A minha Mãe formou com o meu Pai, os melhores pais com que se pode sonhar.

Somos 4 irmãos, três raparigas e um rapaz, como continuo a dizer, e temos, entre a mais velha e a mais nova, menos de 7 anos de diferença, ou seja, é fácil imaginar a alegria naquela casa, quando estávamos na idade de dar muito trabalho à minha Mãe. O meu Pai era médico e a minha Mãe sempre foi "doméstica", uma palavra que ela sempre odiou, e que tantas vezes teve de escrever, em impressos que solicitavam a indicação de profissão. Além de nós os seis, vivia connosco a minha Avó Albertina, que ficou viúva ainda antes de eu nascer, e que acabou por viver até aos 106 anos. Sobre a minha Avó paterna há uma curiosidade, porque viveu em três séculos diferentes: Nasceu no XIX e morreu no XXI. E, durante a nossa infância, além dos sete elementos da família, ainda vivia connosco o Saltitão, um cão "Epagneul Breton" que viveu muitos anos, a que os nossos amigos chamavam Saltitão Bastos, porque ia sempre connosco para todo o lado. O carro da família foi, toda a vida, uma carrinha Peugeot 404, para cabermos todos lá dentro.

A minha Mãe, foi a primogénita de dois professores de história e geografia, (o meu avô também tirou o curso de direito, mas gostava mesmo era de ensinar). A Avó Aida e o Avô Norberto, tiveram depois mais 4 filhos , dois rapazes e duas raparigas, e os cinco foram educados também pela minha tia avó Nanita, professora de inglês e de alemão, solteira, e vizinha porta com porta, dos meus avós, ali na Rua Sampaio e Pina, na esquina com a Rua Castilho, em Lisboa. Aqueles cinco irmãos receberam uma primorosa educação.

A minha Mãe, sempre uma ávida leitora, e uma excelente pianista, não encontrou um curso de que gostasse. Primeiro foi para físico-química, não gostou. Depois foi para medicina, também não gostou. Finalmente casou com o meu Pai e passou a ser "doméstica", a gerir uma casa, que era já na altura uma muito velha casa, o número 42 da Rua José Diogo da Silva, em Santo Amaro de Oeiras. Mas os meus irmãos e eu adorávamos a nossa casa, onde vivemos até aos meus dez anos, porque tinha um jardim a toda a volta, onde brincávamos até nos deixarem, todos os dias. Nós os 4 também aprendemos a tocar piano, não porque quiséssemos, mas porque a minha Mãe achava que nenhuma educação está completa sem a educação musical. E também para ajudar a sua velhinha professora de piano, a Senhora D. Antónia Colaço, que vivia com muitas dificuldades.

A minha Mãe era quem mandava lá em casa, e quem nos aturava aos quatro, à sogra e ao cão, a tempo inteiro, enquanto o meu Pai ia para Lisboa, trabalhar no Instituo Português de Oncologia. Por isso, ninguém pode dizer que a minha Mãe nunca trabalhou. Educou 4 filhos, o melhor que se pode imaginar, cuidou da sogra sempre com o maior desvelo, embora se pegassem, mas com graça, nós, pelo menos ríamos à gargalhada. Ao fim-de-semana, o meu Pai muitas vezes pegava nos 4 filhos e no cão e íamos passear, quase sempre para Sintra, para a Mãe ter tempo para ela, como dizia o meu Pai. Hoje em dia, imagino o alívio que seria para ela, quando a porta se fechava, e podia ir tocar piano, descansada, ler ou ouvir música, sempre clássica.

Quando o meu Pai ficou doente, com uma doença degenerativa, a minha Mãe cuidou dele, até ao fim. Isto aconteceu muitos anos depois do tempo que descrevi no parágrafo anterior, já nós os filhos, tínhamos saído de casa havia muitos anos, e já tinham nascido alguns dos seus netos. Foram anos a fio em que o meu Pai ia piorando, lentamente, e a minha Mãe nunca quis ouvir sequer a conversa, dos 4 filhos em uníssono, que lhe diziam que o Pai devia ir para um sítio, onde fosse cuidado por profissionais. Alegávamos que a Mãe não podia aguentar aquela situação sozinha, e ela respondia apenas, "o Pai sabe que está em casa, e é aqui que ele é feliz. Não insistam porque quem manda na minha vida, sou eu".

Era na verdade uma ternura, ver a minha Mãe a cuidar do meu Pai, e como ele gostava. O meu Pai manteve até ao fim, duas qualidades, o amor pela família e o sentido de humor. A certa altura, quando o meu Pai já estava totalmente dependente, a minha Mãe arranjou a Paulina, para a ajudar. A Paulina, brasileira, de quem o meu Pai também gostava muito, continua, hoje em dia, a ir a casa da minha Mãe, apesar de o meu Pai já ter morrido, em Setembro de 2010. A razão é simples, tornaram-se as melhores amigas, por terem partilhado aquele trabalho de amor a um doente, durante tantos anos.

E é claro que a minha Mãe conseguiu, que o meu Pai morresse em casa. Ele no dia seguinte tinha de ir ao Hospital de Santa Maria, fazer uns exames, e a última frase que o meu Pai disse à minha Mãe foi: "Guida, eu não quero ir para o hospital". O meu Pai deitou-se e morreu no sono, de madrugada. A minha Mãe achou melhor esperar pela manhã, para ligar aos quatro filhos, preocupada porque nós trabalhávamos e precisávamos de descansar. E ali ficou, deitada ao lado do meu Pai, até que o sol nasceu, e ligou a cada um de nós.

A mim apanhou-me já no carro, a ir para o trabalho. Deu-me os bons dias, e depois disse que tinha uma notícia para me dar. Disse apenas: o Pai. Comecei a tremer de tal maneira que tive de parar na berma. Quando consegui pegar no telemóvel, liguei para o meu chefe, na altura um holandês com quem eu me dava muito bem, para avisar que fizessem a reunião de direção sem mim, porque eu não ia trabalhar. Ele perguntou porquê, e eu disse-lhe. Respondeu apenas, só voltas ao trabalho, quando quiseres.

A casa dos pais começaram a chegar os quatro filhos, os três mais velhos, quase ao mesmo tempo, a outra, mais tarde. Mais tarde, quando chegámos à igreja, onde foi o velório, a primeira coroa que ali chegou foi a da empresa onde eu trabalhava. Tudo me comovia. A minha Mãe, sempre com uma serenidade absoluta, estava devastada, porque tinha perdido o seu único amor, de sempre.

A minha Mãe passou a vida toda a estudar, nas horas livres. Estudou grego clássico, latim, egiptologia, alemão e italiano. O francês e o inglês, já tinha estudado no liceu. Hoje em dia, usa o Whatsapp para comunicar com toda a gente, o que lhe dá muito jeito, porque temos a família espalhada, pelo mundo inteiro. Continua com uma vontade imensa de aprender, e passa a vida a fazer pesquisas no Dr Google, como ela lhe chama.

Neste momento, a minha Mãe está no Gravito, a aldeia de origem da família da sua Mãe, e na fotografia, que me mandou ontem de lá, aparece ao lado da sua irmã mais nova, a Bli (de gorro). Só para rematar, esta minha tia doutorou-se no King's College, em contos de fadas.

Uma coisa é certa, nós não saímos às pedras.

17ABR2023


UM ANO DE UM NOVO AMOR

Todos os dias são de celebração, da vida, mas não invalida que aproveitemos as datas redondas para celebrar ainda mais. E hoje faz um ano que nasceu a minha primeira neta, um ano desde que a minha primogénita foi mãe, um ano desde que eu fui avó. E apesar do avô da minha neta não estar entre nós, há muitos anos já, ele também continuará sempre a fazer parte desta história.

Quero partilhar com todos os que estão na minha vida, sejam família, amigos ao vivo ou amigos que nem nunca vi, mas de quem estou próxima também, que me sinto verdadeiramente abençoada por ter descoberto esta magia, que aconteceu no meu coração.

Quando sentimos que já cá andamos, de coração cheio, com os afectos que acumulámos, e que parecem não dar espaço para mais nenhum, eis que chega um novo Ser, que consegue virar tudo de pantanas, nesse nosso equilíbrio inventado, e instala-se dentro de nós, sem pedir licença a ninguém, para ocupar o seu lugar para sempre.

A magia a que eu me referia, tem a ver com isto, de continuar sempre a aumentar, a capacidade do coração de se dar e de amar.

Conheço avós que dizem que os netos são filhos duas vezes. Eu não sinto assim. Os meus filhos são os meus filhos e nunca vai haver nada semelhante a isso. A minha neta abriu uma nova dimensão no meu coração, tal como os meus filhos o fizeram, no passado. Tem um lugar só dela, para já, mas agora sei que se outros netos vierem, ela terá que partilhar esse seu, por enquanto, exclusivo patamar, com quem eventualmente chegar.

Vivi, sem dúvida, um dos anos mais felizes da minha vida, desde 1 de Março passado. Voltei a ter um bebé "meu", nos braços, para encher de mimo e abraços, relembrei as canções com que embalava os meus filhos, passados mais de vinte anos. E tantas outras coisas, preciosas, que vão aumentar o meu filão de memórias e que seria impossível detalhar num texto, que idealizei pequeno e que já não está, nem pouco mais ou menos, tão sucinto como previsto.

A minha neta veio avivar na minha consciência, o quanto a inocência e a pureza das crianças nos trazem, de ensinamento sobre a vida, o valor da ternura, da paciência, da empatia, da proteção, do aconchego. E olharmos para um bebé, tão à nossa mercê, relembra-nos ainda a responsabilidade que temos, para evitar que alguma vez se sinta em perigo, ou ameaçado, e se sinta só, ou abandonado .

Nós chegámos antes, temos uma obrigação em relação aos que chegam depois: deixar-lhes um mundo melhor. Talvez seja essa a nossa missão, talvez seja esse o sentido da vida, afinal. Dar tudo o que temos, amar tanto quanto somos capazes, para que as crianças de hoje também o possam continuar a tentar, e sentir este imenso prazer de descobrir que somos tudo o que quisermos, se mantivermos sempre aberta a porta desta magia, que todos temos dentro de nós, tantas vezes escondida, esquecida ou adormecida. A nossa infinita capacidade de amar, que nada nem ninguém nos pode tirar.

1MAR2023


CASTANHEIRO DO SUL, CORREIO DO DOURO

A nossa avó paterna, a avó Albertina, nasceu em 1900, primogénita a quem se seguiram dez irmãos, no Castanheiro do Sul, uma aldeia perdida na região do Douro, perto do Pinhão. Quando chegavam as férias lá íamos nós - os quatro irmãos, os pais, a avó e o cão - na quase eterna carrinha Peugeot 404, rumo ao Castanheiro para gozar o verão com o único irmão da avó que ainda lá vivia, o tio Augusto, casado com a tia Laura, que ali tinham a casa e a vida, dedicados às suas vinhas, abelhas e pomares.

Nos anos 60 e 70 do século passado, ir de Santo Amaro de Oeiras até ao Castanheiro era, por si só, uma aventura. Hoje em dia são os mesmos quatrocentos e tal quilómetros de distância mas a viagem nessa época, sem autoestradas nem vias rápidas, demorava quatro vezes mais. Admiro a paciência dos nossos pais quando, ainda não chegados a Lisboa, já alguém perguntava se faltava muito para chegarmos ou dizia estar muito aflito para fazer xixi.

O tio Augusto e a tia Laura não tiveram filhos e viviam sozinhos num casarão, e era também por isso com muita alegria que nos recebiam durante aquelas semanas em que virávamos tudo, incluindo as suas pacatas rotinas, de pantanas e nós os quatro, os miúdos, que entre o mais novo o mais velho temos menos de sete anos de diferença, não sentíamos menos entusiasmo em ir para lá do que eles em nos receber. Ir para o Castanheiro era sinónimo de férias e liberdade e como durante os anos em que fomos para o Castanheiro não fomos de férias para mais sítio nenhum, não havia comparação, era mesmo o melhor destino que a nossa imaginação conseguia alcançar.

Tirando muito poucos emigrantes que vinham de França visitar as famílias, nós éramos os únicos forasteiros no Castanheiro e os nossos amigos eram os meninos da aldeia. Não tínhamos na altura a noção da pobreza que nos rodeava. Longe de sermos nós meninos ricos, soube muito mais tarde que ir para o Castanheiro era o único destino de férias que o orçamento familiar podia suportar, havia mesmo assim uma diferença abissal entre nós e os outros que, no entanto, se diluía inteiramente nos jogos, brincadeiras e aventuras que partilhávamos, nesses longos dias de verão, passados sempre na rua.

Só parávamos em casa à hora das refeições. Almoços e jantares, sempre todos juntos, vividos na grande e antiquada casa de jantar, a saborear os petiscos que a tia Laura nos preparava com tanto esmero e dedicação e a gozar também as histórias que cada um tinha para contar. O austero tio Augusto, que no entanto lidava connosco com um imenso carinho, era daquelas pessoas totalmente isentas de sentido de humor, mas, mesmo assim, tentava ser engraçado com as duas únicas e repetitivas piadas que lhe ouvi durante toda a vida. Uma delas era responder "foi feita ao lume" quando alguém se queixava que a sopa estava quente, a outra era quando estávamos a ver um filme na televisão, durante qualquer cena que fosse mais empolgante ou dramática sair-se com um "isto é só filme" o que, como é fácil entender, retirava toda a emoção do momento à restante plateia.

Graças a não haver ainda água canalizada na aldeia, um dos passatempos que estava no topo das nossas preferências era ir à fonte, montados na albarda de um cavalo, com duas grandes bilhas de metal de cada lado, a chocalhar a cada passo, guiados por um encarregado que trabalhava para os tios, deixávamos a aldeia bem lá para trás, por um caminho na ingreme encosta, estreito e semeado de pedras e arbustos, por onde provavelmente nem as cabras gostariam de se aventurar; como só podia ir um dos meninos de cada vez, este era um programa que não estava garantido todos os dias, apesar de se ir à fonte diariamente, de manhãzinha e ao fim da tarde, sempre pela fresquinha.

O tio Augusto tinha improvisado um sistema de duche e, por isso, mal sentíamos a falta da água canalizada, só quando nos calhava ser dos últimos a tomar banho e se esgotava a água no depósito, quase sempre quando estávamos ensaboados, da cabeça aos pés. "Acabou a água!" Era por isso uma gritaria que se ouvia habitualmente naquela casa. Lá ia então um dos adultos reabastecer o depósito enquanto o ensaboado pacientemente, que remédio, esperava.

O grande portão da casa dava para o largo onde tudo acontecia porque aí estavam as duas lojas da aldeia, a taberna, onde existia o único telefone num raio de vinte quilómetros e onde podíamos entrar à vontade para jogar matraquilhos a um Escudo (menos de meio cêntimo de Euro) as nove bolas, e a loja em frente que, além de vender tudo, mercearias, legumes e frutas, roupas e sapatos, loiças e demais quinquilharia, era também o posto de correios e o único local onde chegava a correspondência para toda a população da aldeia, com a morada comum "Castanheiro do Sul, Correio do Douro".

O carteiro chegava ao fim da manhã na sua barulhenta motorizada, envolto numa densa nuvem da poeira levantada da terra batida e as pessoas que esperavam carta e outras só por curiosidade, a miudagem incluída, iam-se aproximando expectantes pelo momento solene em que o carteiro sacava da sua bolsa de cabedal a correspondência e começava a recitar, alto e bom som, o nome dos endereçados do dia.

Lembro-me de ficar ali, especada e encantada, a ouvir os nomes e as reações que se seguiam que, evidentemente, variavam de um extremo ao outro do espectro emocional, tanto no momento em que soava cada nome como, mais tarde, já depois do carteiro ter partido com as cartas que seguiam na volta do correio, quando se iniciava o serviço de leitura das missivas, serviço esse prestado também pela dona do estabelecimento, uma das raras habitantes da aldeia que sabia ler.

Passaram-se muitos anos, mais de três décadas, em que não voltei ao Castanheiro até que, num outono recente, já deste século, aproveitando uma ida ao Porto para assistir a um casamento, passei depois o fim-de-semana no belíssimo The Vintage House, no Pinhão, hotel na margem do rio Douro, rodeado pelas deslumbrantes e sinuosas encostas de vinhas douradas. Não podia perder a oportunidade de voltar e percorri esses escassos quilómetros, numa doce ansiedade, como quem vai fazer uma viagem ao passado e, mesmo sabendo que se diz que não devemos voltar aonde já fomos felizes, não resisti à tentação de rever o Castanheiro de um tempo longínquo mas ainda não inteiramente perdido, pelo menos enquanto o conseguirmos recordar.

O Castanheiro continua a ser uma pobre aldeia mas pareceu-me outro lugar, chegou entretanto o alcatrão às estradas e a água canalizada, construíram-se algumas descaracterizadas casas e lojas e só diante do grande portão da casa, que afinal não é tão grande mas que ali se mantém, é que tive a certeza de estar no mesmo lugar, do que me pareceu, de tão distante, outra vida, onde habitavam ainda os nosso amigos de quem perdemos o rasto e os tios, a avó e o pai que já nos deixaram também. O Castanheiro das memórias esbatidas e difusas da minha infância.


QUANDO EU FOR GRANDE

Sem nunca ter sido "hospedeira do ar", acabei por visitar muitas "terras" e andar muito de avião, mais de trezentas vezes, entre quatro continentes e mais de trinta países. Tive os meus dois bebés que cuidei e mimei até ao limite do possível e agora, depois "de uma certa idade", sou finalmente uma pacífica "doméstica".

Afinal tenho vivido a vida com que sonhei em menina. Adaptada à realidade, é certo, como muito mais altos e baixos do que podia imaginar naquela idade, quando escrevi esta redação na 3ª classe. Na verdade tem sido uma vida em cheio, a minha, literalmente de sonho, não por ter sido, até agora, isenta de contratempos e de dor mas porque não a trocava por nada. Não mudava nada. Assim, só posso mesmo é sentir-me grata, cada dia, todos os dias.


CONFISSÃO

Teria uns nove ou dez anos quando me confessei, pela primeira vez, antecedendo a primeira comunhão. Estava numa pilha de nervos porque não me lembrava de pecado nenhum que tivesse cometido. Quando o padre me perguntou que tinha eu para lhe contar, não o quis desapontar e respondi: "Senhor Prior, eu não tenho pecados mas, se quiser, posso contar-lhe alguns dos pecados dos meus irmãos". Nunca me esqueci deste episódio porque levei uma valente descompostura, não só do padre (com penitência de Pais Nossos e Avé-Marias) como, posteriormente, da minha Mãe. O padre afinal tinha achado graça e contou o episódio à minha Mãe e eu, quando fui confrontada por ela, ainda tive a insolência de perguntar: "Como é que a Mãe sabe? Então e o segredo da confissão?". Fiquei de castigo. Foi remédio santo, nunca mais tentei, nem nunca mais tive vontade de fazer queixinhas de ninguém.

12DEZ2020


UM PASSADO TÃO LONGÍNQUO COMO RECENTE

Quase toda a minha vida profissional foi passada em empresas de tecnologia de informação e em funções comerciais.

Quando comecei a vender computadores, nos anos oitenta do século passado, chamávamos computadores pessoais a uns caixotes pesadíssimos, em metal, que tinham monitores igualmente pesados e também em forma de caixotes, por cima. Lembro-me que havia modelos que nem disco rígido tinham, tinham apenas memória RAM de meio megabyte ou de um megabyte (a loucura!), e trabalhavam com disquetes de 5 1/4 polegadas ou, já mais modernas, de 3 1/2 polegadas. O ambiente de trabalho era o DOS e os processadores de texto (WordStar, por exemplo) eram pouco mais sofisticados do que uma máquina de escrever. Um computador com 20 MB em disco, 1 MB de RAM e um monitor de 12 polegadas monocromático custava cerca de mil contos (que é como quem diz 5.000 Euros). Já existiam monitores policromáticos mas eram um luxo absoluto e, para os programas de então, nem sequer faziam sentido.

A primeira revolução tecnológica, que apanhei já em funções, foi a chegada do MS Windows que, rapidamente, tornou obsoletos todos aqueles equipamentos caríssimos, porque exigia performances e capacidades muito superiores. Além disso aos computadores que se vendiam até então faltava-lhes o rato, acessório que passou a ser essencial e que até aí não fazia falta nenhuma. A evolução passou a ser cada vez mais rápida e o ponto crucial seguinte foram as redes locais. Parecia-nos uma coisa do outro mundo, os computadores poderem estar ligados entre si e, por exemplo, poderem partilhar a mesma impressora. Impressoras que inicialmente eram de agulhas, daquelas que fazem muito barulho e usam papel contínuo e que depois foram sendo substituídas pelas tecnologias de laser e de jacto de tinta. Começava-se a falar de servidores como essenciais em qualquer ambiente profissional, máquinas capazes de gerir o fluxo de informação nas empresas.

Vivíamos num ambiente em que cada semana apareciam novidades. Por um lado era muito estimulante mas, por outro, para quem vendia as máquinas e os programas, era muitas vezes constrangedor porque aqueles grandes investimentos ficavam obsoletos, de um dia para o outro. Lembro-me de dizer às empresas minhas clientes, quando confrontadas com a evolução constante e que por isso duvidavam do acerto no investimento: "Pensem apenas na solução que precisam para as questões que têm de resolver agora. Depois, por favor, não vejam mais notícias sobre as novidades da informática porque senão vão ficar sempre descontentes. Isto não vai parar de evoluir e, a certa altura, é preciso avançar e tomar decisões."

Pouco tempo depois deu-se mais um gigantesco passo: passar das já simples redes locais para as redes remotas. Inacreditável, já era possível ligarem-se computadores que não estivessem no mesmo edifício, nem na mesma cidade, nem no mesmo país...

Davam-se os primeiros passos para o conceito da aldeia global, e a revolução verdadeiramente avassaladora foi a chegada da Internet. Quando tive a primeira formação sobre o assunto, pareceu-me ficção científica e, ao mesmo tempo, um imenso buraco negro porque, como ainda não existiam ferramentas de busca sofisticadas, como o google, por exemplo, dava a ideia que seria muito difícil encontrar fosse o que fosse naquele infinito manancial de informação.

Apesar de ter acompanhado, profissionalmente, toda esta explosão da tecnologia digital dos sistemas de informação, que anulou distâncias e fronteiras e que colocou qualquer pessoa, num qualquer ponto do globo, à distância de um clique, não tive em momento nenhum imaginação suficiente para prever este mundo admirável em que vivemos, todos ligados, actualmente.

Numa altura em que os meus filhos, e os filhos da minha geração, já andam pelos trinta anos ou mais, caímos na realidade de sermos verdadeiras testemunhas de um passado que, embora recente, parece a idade das trevas para as gerações que nos seguiram. Embora me considere uma adepta incondicional da evolução do conhecimento, e por isso também da evolução tecnológica, e não sendo capaz de prever nada sobre o que virá a seguir, apenas desejo que a tecnologia esteja sempre ao serviço da Humanidade e que nunca se permita que a Humanidade se deixe subjugar por ela.


MANTER A CABEÇA SEMPRE À TONA

Em 2002 diagnosticaram-me uma Hepatite C que, na altura, ainda era uma doença muito difícil de tratar. Podemos viver muitos anos doentes, sem sintomas e sem sabermos, porque a Hepatite C só se deteta através de análises específicas ao sangue, embora, nas análises correntes, de rotina, apareçam indicadores de alerta. No meu caso esses indicadores apareceram quatro anos antes do diagnóstico, quando estava grávida, mas a médica que me seguia assumiu que se tratava de um erro do laboratório pois se eu tivesse aquele nível elevadíssimo de "transaminases" não estaria ali sentada à frente dela. O que é certo é que acreditei e o que é certo também é que a médica não mandou repetir as análises, dois erros, qual deles o pior, e é claro que só me voltei a lembrar deste episódio quando me confirmaram que estava doente.

Todos os que já passaram pela experiência de receber a notícia de um diagnóstico de uma doença grave sabem que é uma mistura de um murro no estômago com o chão a desintegrar-se debaixo dos pés. Enquanto o médico, familiar e amigo, fazia tudo para desdramatizar, com saídas como "agora não te vais pôr a chorar, pois não?" ou "livra-te de ires para a internet fazer consultas sobre isto porque só te vai fazer pior", eu sentia-me a entrar numa bolha que me distanciava de tudo e de todos. Saí do consultório que ficava em Lisboa, na Av. 5 de Outubro, anoitecia, e caminhei sem rumo, quarteirão após quarteirão, atenta às pessoas com quem me cruzava, apressadas, quase todas de expressão carregada e pensava que elas não sabiam a sorte que tinham por não estarem doentes (ou não saberem) e senti inveja dessa normalidade.

Na época vivia em Belas, no Concelho de Sintra, e quando finalmente me meti no carro para ir para casa ainda não tinha ligado a ninguém a dar a notícia. Fiz essa viagem só com um pensamento: eu não quero que os meus filhos cresçam sem mim. Os meus filhos tinham 10 e 3 anos e eu achava que lhes ia fazer muita falta terem a minha presença, além de me aterrorizar que quando crescessem não se lembrassem sequer que tinham tido uma Mãe que os amava, acima de tudo na vida.

E foi assim que começou a minha recuperação, ainda antes de chegar a casa e muito antes de começar o tratamento propriamente dito. Eu não posso morrer tão nova (estava quase a completar 38 anos) porque os meus filhos precisam de mim. Essa foi a minha primeira obsessão dos longos meses que se seguiram, a segunda, que começou a germinar também ainda durante essa viagem de carro, foi que não me ia deixar abater, o que não dependia de mim, paciência, mas em relação ao que dependesse de mim eu ia dar tudo por tudo e, quando cheguei a casa, já estava plenamente convencida que ia dar cabo da famigerada Hepatite C e viver ainda muitos anos.

Uma das situações mais complicadas foi dar a notícia às pessoas que gostavam de mim porque chegava sempre a um ponto em que quem as consolava era eu. Não estou a implicar que me tenham trazido energias negativas, nem pouco mais ou menos, mas na verdade, e por milagre talvez, eu é que estava com um optimismo exacerbado e nunca mais, durante o ano e tal que se seguiu, com exames e tratamento, me voltou a passar pela cabeça que não me ia curar como acreditei que ia acontecer, nos minutos seguintes à notícia.

Fui internada no IPO para fazer uma biópsia ao fígado, um exame muito complicado que obriga a não nos mexermos nas 24 horas seguintes porque o fígado é muito atreito a hemorragias quando o picam e lhe tiram um bocadinho. Fiquei numa enfermaria em que a única doente não oncológica era eu, sentia-me um extraterrestre e não consegui dormir, não pelos gemidos e respirações difíceis que ouvia mas porque a minha cabeça estava a processar desalmadamente e só queria sair dali, começar o tratamento e acabá-lo também.

Comecei o tratamento no Verão desse ano e acabei um ano depois. O médico disse-me que podia ficar de baixa durante todo o tratamento mas eu optei por continuar a trabalhar ( e a viajar em trabalho) e acabei por só faltar, durante todo o processo, no dia da tal biopsia de que falei. O tratamento era feito em casa, comprimidos diários e uma injecção subcutânea semanal, que a própria pessoa dá.

O tratamento (Interferon e Ribavirina) era considerado muito agressivo, tinha muitos efeitos secundários de que fui avisada mas eu não sofri nada. No entanto, assim que soube que me podia cair o cabelo, fui cortá-lo à escovinha porque me assustava, isso sim, ficar com cabelos compridos nas mãos. Foi o meu primeiro corte de cabelo radical.

Apeteceu-me contar esta história porque estou convencida que a cabeça e a atitude têm um grande impacto na saúde e nas doenças e que por mais que o corpo fique doente há que lutar para não deixar que a cabeça adoeça também. Todos passamos por dificuldades, todos temos problemas para resolver e a diferença está só na nossa atitude e essa está sempre nas nossas mãos, apesar de nos esquecermos muitas vezes que é assim.

9JUN2020


MATRIARCA DE UMA FAMÍLIA SEM FRONTEIRAS

Se do lado paterno os meus irmãos e eu não tivemos tios e, obviamente, não tivemos primos, do lado materno não foi bem assim.

A Avó Aida nasceu em Lisboa, no bairro de Campo d'Ourique, no dia 28 de Janeiro de 1908. Muito jovem ficou órfã de Mãe, ela e a sua irmã Aurora, 11 meses mais nova, e ambas acabaram por ser criadas pelas amas, muito mais do que pelas duas madrastas, que sucessivamente sucederam à sua Mãe, como as senhoras da casa. A Aida era uma menina morena, pálida e magricelas e a sua irmã Aurora era uma menina loira de olhos azuis luzidia e as amas não escondiam a predileção por ela. Uma das histórias que ficou, para atestar essa preferência descarada, remonta a quando as irmãs se apresentaram para fazer o exame da 4ª classe, no mesmo dia porque por terem idades tão próximas o Pai decidiu que a mais velha podia esperar pela mais nova, para que depois pudessem seguir os estudos par a par, apareceu a Aida vestida de qualquer maneira e a Aurora vestida como uma princesa, ficando mais uma vez bem patente para os professores que havia ali um tratamento preferencial por uma delas e, uma das professoras ficou tão indignada que quando chegou a vez da Aida fazer a sua prova, mandou a Aurora despir-se para trocarem de roupa para que, deste modo, a Aida se pudesse apresentar de uma forma condigna ao exame, como na época mandava a tradição. O que é certo é que as duas irmãs foram as melhores amigas, durante toda a vida e essas discrepâncias no tratamento recebido na infância, acabaram por ser, mais tarde, apenas motivo de graças, risos e histórias para contar.

Estudaram e licenciaram-se, as duas irmãs, uma em História e Geografia e outra em Línguas Germânicas, numa época em que não era comum as meninas irem para além de tocar piano e falar francês. Posteriormente foram ambas professoras no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, quando viviam, cada uma na sua casa mas porta com porta, mesmo ali ao lado, na Rua Sampaio e Pina, num prédio de esquina para a Rua Castilho. Uma casou e teve filhos, a outra ficou solteira e a fazer de anjo da guarda da primeira e, mais tarde, de toda a descendência que foi nascendo à irmã.

A Avó Aida nunca deixou de ser franzina e, de saúde debilitada, chegou a estar internada com tuberculose, duas vezes, no sanatório do Caramulo. Mais tarde, quando nós netos já andávamos em correrias pelos longos corredores das casas da Sampaio e Pina, lembro-me sempre da Avó Aida, toda a vida, muito positiva e bem disposta, dizer que ninguém se devia preocupar com a sua saúde porque, além de ter uma família de médicos, era sabido que "mulher doente era mulher para sempre" e, na verdade, morreu pouco mais de um mês antes de completar 91 anos. A irmã, a que se tornou a minha querida tia Nanita, sobre quem já escrevi, acabou por morrer muito mais nova, com 69 anos e foi a primeira pessoa que amei e que perdi.

A Avó Aida teve cinco filhos e deu efetivamente origem a uma família de médicos. Dois dos seus filhos tornaram-se médicos, um deles casou com uma médica, e duas das suas filhas casaram com médicos também. Uma monotonia profissional, chegávamos a juntar esses cinco médicos nos Natais e noutros encontros familiares, provavelmente juntavam-se ali mais médicos do que nalguns serviços de urgência, no entanto, essa monotonia não abrangeu outros aspetos da família da minha Avó como, por exemplo, a diversidade de nacionalidades que hoje em dia têm os seus descendentes. Em resumo: Três dos seus cinco filhos casaram com estrangeiros e daí resultaram os meus primos direitos irlandeses, escoceses e canadianos! Mas a mistura de nacionalidades não ficou por aqui já que, na geração seguinte, um casou-se com uma chinesa, outro com uma sueca e outra com um belga, hoje em dia todos com filhos... e penso que é impossível saber onde esta família irá parar, em termos multi-culturais. Uma coisa é certa, a Avó Aida, em parceria com o Avô Norberto, claro, deu um inegável contributo para se continuar a espalhar a origem portuguesa, por esse mundo fora.

AIDA FERNANDES DAVID (28JAN1908-14DEZ1998)

28JAN2021


AS GAFES DA AVÓ - Introdução e primeiro deslize

os meus irmãos e primos e eu crescemos a ouvir as incontáveis gafes da nossa Avó e, sendo algumas verdadeiramente anedóticas, resolvi reduzi-las a escrita, preservando assim na memória histórias engraçadas que seria uma pena perderem-se no esquecimento.

Depois de uma temporada em Lourenço Marques (hoje Maputo) a minha Avó regressou a Lisboa, não sem antes prometer a uma grande amiga, que ficava em Moçambique por mais uns tempos, que iria visitar a sua Mãe doente assim que chegasse à Metrópole e que logo lhe daria notícias.

O que é certo é que chegou a Lisboa e sempre cheia de afazeres foi adiando a visita à senhora doente, sem esquecer a promessa feita à sua amiga e com um sentimento de culpa em crescendo. Um belo dia pensou que não podia adiar mais o cumprimento da sua promessa, arranjou-se e foi fazer a visita que já tardava de tantas vezes adiada.

Quando chegou perto do prédio onde a velha senhora vivia, caiu-lhe o coração aos pés. No passeio estavam várias pessoas, vestidas de luto e de semblante a condizer, as portas do prédio abertas de par em par e um carro funerário estacionado mesmo em frente.

A minha Avó aproximou-se de um dos enlutados que se encontrava no passeio e, com toda a delicadeza possível, dentro do seu estado de espírito alvoraçado pelo choque e pelo remorso, perguntou:

"Bom dia, desculpe, pode por favor dizer-me quem morreu?"

"Sim, minha senhora, foi o Sr Coronel do 2º andar"

Ao que a minha Avó, já sorridente e grata, respondeu:

"Ai, ainda bem!".


A PASTELARIA SUIÇA

Desde muito pequena adorava ficar em casa da Nanita, a minha querida Tia-Avó, que morava num prédio na esquina da Rua Castilho com a Rua Sampaio e Pina, num alto quarto andar, todo ele virado para o parque Eduardo VII.

A Nanita nunca casou nem teve filhos e foi a tia sempre presente da minha Mãe e dos meus tios e depois, claro, dos sobrinhos netos. Tinha um "fraquinho" por mim, que não disfarçava nada e eu encantada quando ficava com ela, encharcada de mimo e atenção que, em casa dos meus Pais, tinha que dividir com os meus três irmãos.

Todas as manhãs apanhávamos muito cedinho o autocarro nº2 em frente ao Liceu Maria Amália e íamos até ao Rossio, para assistir à missa na Igreja de São Domingos e depois, infalivelmente, íamos tomar o pequeno-almoço à Pastelaria Suiça.

Confesso que gostava muito mais do pequeno-almoço do que de assistir à missa, embora, durante a celebração, já estivesse a viver por antecipação o prazer de me sentar com a Nanita na esplanada se estivesse bom tempo, lá dentro se não estivesse tão bom e esperar pelo galão e croissant com fiambre que eu pedia, invariavelmente também.

Todos os empregados conheciam a Nanita e tratavam-nos com todo o desvelo e eu sentia- me numa espécie de paraíso, enquanto dava pequenos goles no galão e dentadinhas no croissant, devagarinho, para fazer com que aquele momento alto do dia se prolongasse indefinidamente.

A Nanita já morreu há muitos anos, em 1978, alguns anos depois dessas doces rotinas que descrevi. Foi a primeira pessoa que perdi, tinha eu 14 anos. Nunca me vou esquecer desse dia 1 de Outubro frio e cinzento, de não conseguir dormir na noite a seguir ao enterro, a pensar na escuridão gelada onde estava a minha tia, sozinha como eu também me sentia por ter ficado sem ela.

Sempre que passo pela Pastelaria Suiça relembro esses preciosos momentos da minha infância, transportada pelo aroma do café e croissants acabados de fazer, sem conseguir controlar nem o sorriso nem um profundo suspiro, do gosto que dão as memórias de momentos felizes, que nos acompanham pela vida fora.

Soube esta semana que a Pastelaria Suiça vai fechar. Não pude evitar sentir esta pena, feita de nostalgia. 

JUN2018


O NEGÓCIO DA MEDICINA

Hoje, durante a minha caminhada de 8 km à beira Tejo, aquela rotina que me ajuda a manter a paz interior e o equilíbrio, para conseguir enfrentar a voragem dos acontecimentos, pensei, uma vez mais, no meu Pai. E se escrevo que o meu Pai é um dos meus heróis, a quem lê, parece um clichê, é lerem este texto até ao fim.

Já escrevi muito sobre o meu Pai, aqui nas minhas Histórias de Uma Página Só, eu sei, mas pensando em quem nunca colidiu com nenhum desses textos, e só para enquadrar, é fundamental informar que o meu Pai foi médico, gastroentereologista e citologista, investigador na área do diagnóstico precoce do cancro, com muitos trabalhos publicados e revistos por pares, internacionalmente. Chamava-se Armando de Lemos Bastos.

Nunca percebi claramente porque é que o meu Pai teve medidas de segurança da PIDE/DGS, antes do 25 de Abril de 1974, e foi saneado no dia seguinte à revolução, do seu cargo de chefe de serviço no Instituto Português de Oncologia. E hoje vieram-me à memória algumas conversas ao jantar, em que nos reuníamos os quatro filhos, os nossos pais e a avó Albertina que connosco, já viúva, sempre viveu. O meu Pai queixava-se muitas vezes dos chatos delegados de propaganda médica, que o assediavam constantemente, para ele receitar medicamentos aos seus doentes oncológicos e o meu Pai, na sua inocência ou excentricidade de cientista, dizia-lhes na cara que nem pensar, que nenhuma das drogas que eles lhe queriam impingir como eficazes para combater a evolução dos cancros dos seus doentes, eram mesmo benéficas para eles. Já nessa altura, a contrapartida das farmacêuticas, para os médicos que alinhavam no jogo, eram grandes viagens a lugares paradisíacos, com tudo pago, e outras mordomias e cheques. Escusado será dizer que o meu Pai não ganhou nenhuma dessas viagens e que vivemos sempre "na estica" como dizíamos na gíria familiar. Não só não alinhava no negócio da droga como pagou do próprio bolso muitas viagens "lá fora" para apresentar os seus "papers", porque a internet ainda era ficção científica, na época.

Depois de ter ouvido os esclarecimentos prévios de R.F. ao processo que se instaurou mundialmente, a toda a máfia do medicamento e não só, video integral num comentário da minha publicação em destaque (a que aparece em primeiro na cronologia do meu perfil pessoal), fiquei a pensar, junto ao rio, como seria doloroso para o meu Pai assistir a tudo isto mas, por outro lado, fortalece-me tremendamente o espírito de missão, lutar pela verdade, honrando, ao mesmo tempo, a sua memória.

Tantas saudades, e tanta gratidão pela educação que me deixou, que foi impossível terminar de escrever este texto sem lágrimas nos olhos e sem um nó na garanta capaz de me sufocar.

17FEV2022


ARMANDO DE LEMOS BASTOS

(24JAN1931-17SET2010) II

Faz amanhã 11 anos que o meu Pai morreu. Já escrevi várias histórias sobre ele e já escrevi histórias sobre o luto mas, podendo acontecer estar a repetir sentimentos e ideias que expressei anteriormente, hoje apetece-me escrever outra vez sobre o meu Pai, a minha perda mais substancial e, ao mesmo tempo, a presença mais constante na minha vida, mesmo agora, passados tantos anos, sem o ter, fisicamente, perto de mim. Ainda não consigo escrever sobre o meu Pai sem comoção. Sem que me cresça um nó doloroso na garganta e sem que os meus olhos fiquem molhados, de uma saudade tão grande, de quem me amou tanto, e aos meus irmãos e Mãe, como ninguém.

Viveu sempre contra a corrente. Médico, investigador no diagnóstico precoce do cancro, sofreu medidas de segurança da PIDE antes do 25 de Abril e, após a revolução, foi imediatamente saneado do seu cargo de chefe de serviço do Instituto Português de Oncologia. À primeira vista pode parecer a história de um inadaptado, nos rótulos atuais seria seguramente conotado como um negacionista. E foi um inadaptado sim, porque nunca deixou de lutar pelo que acreditava, até que não pôde mais e uma lenta doença degenerativa o fez parar de lutar, e o deixou viver finalmente sossegado, até morrer, em paz e em casa.

Viveu sempre fora do seu tempo, e fora do sistema, e coleccionou, tanto inimigos de altas patentes como admiradores de alto gabarito. Quando, antes do 25 de Abril, foi proposto para o prémio Nobel pelo Instituto Karolinska, o Estado português vetou essa proposta. Mas nunca se deixou abater e o mais importante é que conseguiu, não só publicar as suas descobertas, e vê-las reconhecidas pelos seus pares como, acima de tudo, foi o melhor ser humano que eu conheci em toda a minha vida, no que concerne a integridade de procurar viver sempre de acordo com os seus valores, em liberdade e em verdade.

Gostava muito de fotografia, e era um ótimo fotógrafo. A fotografia que ilustra esta história, em que estou com o meu irmão Zé, tem mais de 50 anos e só temos essa certeza porque estes miúdos são hoje para lá de graúdos. Era tão genial como empático. Sempre preocupado com os outros e muito esquecido de si, nada cheio de si próprio apesar de ser, um ser extraordinário.

Nos tempos que correm, então, tenho-o mais presente do que nunca, pelo exemplo que nos deu e pela influência que deixou nas nossas vidas. O meu Pai foi o espírito mais livre que eu conheci e espero que, esteja ele onde estiver, se sinta agora orgulhoso de mim, por ter aprendido tão bem os valores e princípios dos quais nos disse sempre nunca podermos abdicar.

"Não sei o que é que o Pai iria sentir ao saber que os seus filhos do meio são, hoje em dia, dois perigosos irreverentes e subversivos, negacionistas e teóricos da conspiração, mas arrisco-me a acreditar que o Pai ia adorar, ia dar uma daquelas suas gargalhadas sonoras e, por dentro, ia sentir o maior orgulho por nós termos aprendido tudo sobre o que é viver, consigo." disse-lhe eu, agora mesmo.

E estou a chorar. Claro.

16SET2021


ARMANDO DE LEMOS BASTOS

(24JAN1931-17SET2010)

Quando o meu Avô paterno adoeceu com cancro, viviam os meus Pais, com a sua primogénita ainda bebé, nos EUA. Resolveram então voltar para Portugal, para estarem presentes e apoiarem os meus Avós, Pais de filho único.

O meu Pai acreditou que ia ser possível em Portugal continuar o seu trabalho de médico e de investigação no diagnóstico precoce do cancro, quando corriam os primeiros anos da década de sessenta do século passado. Mas não foi nada fácil.

Na época falar de cancro era quase um tabu e ideias descabidas como diagnosticar precocemente qualquer doença como a forma mais eficaz de a combater, ainda não faziam sentido. Acabou por viver uma vida profissional entre o fascínio, que a investigação e a descoberta lhe causavam, e a frustração, que a incompreensão do Estado e até dos seus pares lhe trazia.

Na época, para apresentar à comunidade científica um estudo - um "paper" como o meu Pai dizia e que levei algum tempo a saber que queria dizer também papel, em inglês - era necessário viajar e ir onde tudo acontecia, fosse nos EUA ou na Europa, e defender a tese e as conclusões de qualquer descoberta. Acabou por viajar várias vezes, quase sempre à sua custa, e a ressalva vai para a Fundação Calouste Gulbenkian que reconheceu o seu trabalho ainda a tempo e lhe concedeu uma bolsa de investigação, que o ajudou quando todas as portas se fechavam.

Esse reconhecimento tornou possível que mais tarde, já com o apoio do Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil onde trabalhava, o meu Pai organizasse em Lisboa, em Maio de 1973, o Primeiro Simpósio Internacional sobre Fluorescência: Microscopia, Medições e Fotoquímica.

Além do atraso do pensamento científico que o envolveu, ainda sofreu medidas de segurança da PIDE e, por mais estranho que agora possa parecer, foi saneado logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, por ser chefe de serviço no IPO, com a lógica de que os chefes tinham que ser corridos, castigados e perseguidos, independentemente do que andassem a fazer.

Paralelamente a tudo isto, vivia para a mulher e para os quatro filhos. Os meus irmãos e eu tivemos o privilégio de crescer num ambiente muito pouco convencional mas, ao mesmo tempo, sem sentir qualquer tipo de desfasamento em relação às outras crianças. Aprendemos em casa a importância da ciência, da dúvida, das questões, da humildade de nunca nos convencermos que sabemos mais do que os outros, porque os outros podem saber muito mais do que nós e não terem meios para se expressarem.

Fomos assim educados a lutar pelos nossos ideais, a perguntar, a questionar, a não temer não saber. A valorizar todas as formas do pensamento e sensibilidades, a arte em particular, a saber conciliar a razão e a emoção, e a importância de se fazer tudo, seja o que for, com toda a entrega e toda a paixão.

24JAN2021


MEMÓRIAS DE FAMÍLIA

Corria o mês de Junho de 1960 e acabava de atracar no porto de Nova Iorque o RMS Queen Elizabeth, proveniente de Southampton. A bordo vinha um jovem casal com um bebé de pouco mais de um mês e, no porão, o seu Volkswagen "carocha" no qual, após dois dias, seguiram para o Estado de Ohio, concretamente para a cidade de Cincinnati, onde o Pai da pequena família ia começar a trabalhar e desenvolver os seus conhecimentos, como médico gastroenterologista.

Por coincidência uma das suas cunhadas, irmã da sua mulher, também estava nos EUA a concluir uma especialização em Terapia Ocupacional, em Warm Springs, no Estado da Georgia e, pouco dias depois de se instalarem na sua nova casa na Burnet Avenue, pertíssimo do hospital universitário onde ele trabalhava, resolveram ir visitar a irmã.

Lá se fizeram à estrada no seu "carocha" que, escusado será dizer era de um exotismo a toda à prova naquelas bandas e, ao anoitecer, quando pararam para jantar num dos muito típicos diners à beira da estrada, o jovem casal e o seu bebé não passaram despercebidos e suscitaram muita curiosidade aos presentes. Perguntaram-lhes de onde eram e para onde iam e quando responderam que eram portugueses e que iam para Warm Springs (a 850 km) visitar um familiar, o dono do diner ficou de tal maneira impressionado com o espírito aventureiro dos jovens que lhes ofereceu a refeição, depois de os aconselhar a irem com muito cuidado e de lhes desejar uma boa viagem.

Provavelmente o dono do restaurante pensou que aquela podia ser a última refeição daquele extravagante casal, com um bebé tão pequenino e num carro que lhe parecia de brincar, que se aventuravam pelas estradas da América profunda, como se fosse, na altura, a coisa mais natural de se fazer.

O casal eram os meus Pais, nos primeiros tempos da sua longa - e muito preenchida de incríveis acontecimentos - vida em comum.

17 SET2020


UMA EUROPA DE OUTROS TEMPOS

Quando o meu Pai visitou Praga, em trabalho, nos anos sessenta do século XX, ainda no tempo da guerra fria, ainda o país era a Checoslováquia, viveu um episódio que reflecte bem os tempos de então.

O meu Avô seu sogro tinha-lhe pedido para ver se encontrava o disco Má Vlast (A minha Pátria) do compositor Bedrich Smetana e assim que teve uma folga das jornadas médicas que o tinham levado até lá, o meu Pai entrou numa loja de discos - não lhe chamo discoteca para não confundir algum eventual leitor mais jovem - com essa intenção.

Quando se aproximou do balcão e entregou o disco à empregada ela, sem dizer nada, tirou o disco de vinil da capa de cartão, colocou-o no gira-discos e a música invadiu o ambiente da loja que na altura se encontrava cheia de gente. Aos primeiros acordes, um a um e serenamente, todos os clientes foram saindo da loja, acabando por ficar apenas o meu Pai e a empregada que sorria satisfeita com o seu próprio atrevimento, de ter posto a tocar uma música que não podia deixar de ser interpretada como um grito de revolta em relação ao poder opressivo da Rússia, e não se ralando nada com a debandada da clientela receosa de se associar a um ambiente subversivo, onde se ouvia um hino informal mas claro, de amor à pátria e à liberdade.

10AGO2019


PAI

O meu Pai nasceu no dia 24 de Janeiro de 1931 na cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo. Os meus avós, seus pais, tinham fugido da miséria das aldeias do Douro de então e embarcado para Moçambique em busca de uma vida melhor.

Ali viveu a sua infância e adolescência, feliz, sem luxos nem privações. Toda a vida o ouvimos falar com nostalgia daqueles seus primeiros anos de vida, referindo sempre conceitos como natureza, calor, espaço e liberdade.

A minha Avó contava que era difícil mantê-lo dentro de casa enquanto menino e que, muitas vezes, via passar ao longe uma mancha negra de miúdos a correr, numa grande algazarra, com um pontinho branco no meio e já sabia que era o seu filho que ali corria e brincava.

Foi no liceu que um professor de História e Geografia traçou o seu destino.

Quando soube que o seu aluno ia viajar para a Metrópole, para prosseguir os seus estudos na faculdade de medicina em Coimbra, indo aportar numa Lisboa onde não conhecia ninguém, deu-lhe a morada da sua família para que o meu Pai a visitasse, quando chegasse. O meu Pai assim fez e deparou-se com a bela e brilhante primogénita do seu professor, loira e de olhos azuis. Era a minha Mãe.

24JAN2019


SEJAMOS BRANDOS QUANDO JULGAMOS

Quando os meus irmãos e eu, em pequenos, vivíamos em Santo Amaro de Oeiras e íamos à missa ao domingo, do que gostávamos mesmo a sério era ficar depois a brincar no largo da igreja, enquanto os nossos pais e os pais dos nossos amigos tomavam café na pastelaria "Bugio". Atualmente já não existe essa pastelaria, para nós mítica, e no seu lugar instalou-se há vários anos uma agência bancária.

Num desses domingos, a certa altura, no meio da animação das brincadeiras e correrias, fui atropelada por uma bicicleta e alguém teve a bela ideia de entrar espavorido pelo Bugio adentro a gritar "Tio Armando, a sua filha foi atropelada!".

O meu Pai saiu de rompante da pastelaria e, encontrando-me logo à saída, perguntou-me qual das minhas irmãs tinha sido atropelada. Quando respondi "Fui eu!" levei a bofetada da minha vida. O meu Pai nunca me tinha batido antes e nunca mais me bateu daí em diante e aquela bofetada é a prova de que todas as reações intempestivas, sendo tendencialmente erradas são, ao mesmo tempo, humanas e até os melhores pais do mundo podem, de vez em quando, perder o controlo e as estribeiras, na sua ânsia de proteger os seus filhos e de bem lhes quererem.

17DEZ2020


MARIANA

Amanhã a minha primogénita faz 30 anos. Passaram três décadas desde que naquela sexta-feira, de um calor sufocante, às três e um quarto da tarde, nasceu a Mariana, no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa. Não posso dizer que parece que foi ontem porque é mentira, não parece nada! O que eu gostava é que tudo o que vivemos, entretanto, tivesse é passado muito mais devagar, isso é que era!

Não sou aquele tipo de Mãe que desejava ter filhos antes de os ter. Os filhos é que me desejaram a mim, costumo dizer a brincar. Tanto um como o outro me apareceram de surpresa, sem eu os procurar. Mas, a partir do momento em que eu soube que a Mariana existia, ainda sem nome, obviamente, a minha vida mudou radicalmente.

Agora, com uma nova vida dependente de mim, eu tinha uma missão muito bem definida, um objectivo claro na vida e ia dar tudo por tudo para que corresse tão bem quanto todas as minhas capacidades permitissem. Todas as mães (e os pais também) sabem que esta missão de criar os filhos é o maior desafio que a vida nos dá. Já não somos só responsáveis por nós próprios, e por procurarmos sermos bons seres humanos, temos outro que se vai formar e absorver de nós tudo o que nós lhe conseguirmos dar. É avassalador.

Por outro lado, convém não dramatizar, basta olharmos à nossa volta, para o mundo, para a quantidade de humanos que somos, e que nos mantemos vivos, para percebermos que, na esmagadora maioria das vezes, resulta, e os filhos sobrevivem tanto aos nossos erros, como às nossas limitações, tanto às nossas distrações como aos nossos disparates e, a melhor notícia de todas, muitas vezes tornam-se melhores seres humanos do que nós.

Os filhos chegam sem manual de instruções, nem sequer daqueles básicos para começar rapidamente a saber lidar com aquilo! Antes da Mariana nascer eu li todos os livros a que consegui deitar a mão sobre maternidade, bebés, crianças e a psicologia envolvida nisso tudo e, o que é certo, é que assim que ela nasceu isso não parecia ter servido para nada. "Socorro! O que é que eu vou fazer desta criança que tenho nos braços à minha mercê?" pensava, apavorada que ela não aguentasse o meu amadorismo. Mas depois entra em acção o instinto, ou lá o que é aquilo, e a coisa vai-se compondo.

Olhando para ela agora, resplandecente, uma mulher feita e inteira, recém casada com o amor da sua vida, muito em paz consigo e com os outros, alegre, com um fino sentido de humor e feliz, acredito que algumas coisas possam ter sido acertadas, do que eu lhe dei como mãe, mas não me coloco em nenhum pedestal. A ela sim. Porque durante estes 30 anos me ensinou muito mais do que eu a ela, do que eu alguma vez pudesse sonhar.

E depois temos o resto tudo. E do que eu mais gosto é daquela cumplicidade, de quem se conhece tão bem, que basta um olhar para ficar tudo dito e para ficar tudo bem. Desculpem agora a nota mais pirosa, mas não podia ser mais sincera, tenho uma filha linda, de sonho, maravilhosa. E se calhar ela vai-me matar por ter escrito isto tudo. Se eu não der mais notícias já sabem.

8AGO2021


O meu discurso, no dia do casamento da minha filha, no dia 22 de Maio de 2021:

" A Mariana e o Tiago chegam ao dia de hoje, já com uma bela e longa história de amor. Foram 16 anos, em que o crescimento individual de cada um, constituiu os alicerces para a construção do seu projeto de vida em comum.

Foi um imenso privilégio acompanhar de perto a sua jornada e é com a maior emoção, com toda a felicidade, que vivo o dia de hoje, em que a Mariana e o Tiago celebram, com quem mais lhes quer bem, o culminar de um sonho que já é a sua realidade.

Sinto uma profunda gratidão pela filha que tem sido sempre a minha maior amiga, e pelo genro, que amo como um filho, e que só trouxe o Bem à nossa família.

Quando temos tudo, não podemos pedir mais nada.

Muito obrigada"


ESCOLHAS

Fui Mãe pela primeira vez aos 27 anos e, na altura, pareceu-me acertado não batizar a minha primogénita, apesar de assim mandar a tradição da nossa família católica... sete anos depois fui Mãe outra vez e mantive a minha, embora recente, já tradição.

Muitas vezes não se faz a distinção entre o batismo e o batizado, confundem-se os conceitos e, em abono da verdade, quase sempre se dá mais valor e ênfase ao batizado (a festa) do que propriamente ao batismo (o momento religioso) e, quando é assim, é só uma palhaçada.

Apesar de me identificar, então como agora, com os valores cristãos, não me identificava, e continuo a não me identificar, com a instituição que é a Igreja Católica que, em muitos aspetos, considero retrógrada, incongruente e até contraditória à doutrina que proclama.

Optei assim por dar a opção aos meus filhos, quando crescessem, e eis que hoje celebramos o batismo da Mariana, a pouco mais de dois meses de completar os seus 28 anos, depois de vários meses de preparação consciente, guiada por quem a soube envolver, motivar e inspirar.

Não me arrependo de lhe ter passado a escolha e hoje é um dia feliz para ela e para todos os que lhe querem bem, por sentirem também sua a felicidade dela.

Hoje é também um dia de paz, um dia tranquilo, em que a festa acontece, discreta e sem alaridos, no coração de cada um.

02JUN2019


24 ANOS DO MANUEL

Hoje faz 24 anos que nasceu o meu filho mais novo, o Manuel. Não. Não parece que foi ontem, e ainda bem. Entre aquele dia e o dia de hoje, acumulámos incontáveis momentos inesquecíveis, de Amor e de crescimento interior, para além de tantas outras recordações.

Todos os que somos pais sabemos, que esta imensa responsabilidade de trazer filhos ao mundo, é uma missão continua de tentativas, para cometermos poucos erros e muitos acertos, sentindo sempre que podíamos ter feito melhor. Talvez por isso, uma das coisas mais gratificantes da vida, ser olharmos para os nossos filhos, já adultos, e percebermos que ajudámos a crescer e procurámos educar, o melhor possível, pessoas que nos orgulham.

A missão dos pais nunca acaba e, no meu caso, desde que fui mãe que assumi esse como o meu papel principal. Estamos sempre prontos, para quando os filhos precisam de nós, no entanto, é uma sensação de missão cumprida, já ter percorrido a parte do caminho mais difícil e desafiante que é até eles já terem asas para voarem sozinhos. É quando, como pais, podemos finalmente baixar as armas, descansar e gozar plenamente a existência desses novos adultos, que tanto já nos ensinaram, também. Posso afirmar que como Mãe, entre tantos erros e alguns acertos, o resultado me saiu mesmo muito bem. Mais logo celebramos. Parabéns, Manuel.

9JAN2023


MANUEL

Quando cheguei ao Hospital de São Francisco Xavier, pouco depois da meia-noite, no dia 9 de Janeiro de 1999, grávida e com bons indicadores de que tinha chegado a hora, deparei-me com uma greve dos médicos das urgências que veio acrescentar mais emoção ainda à emoção inerente à situação em si.

Quando fui atendida, a médica desculpou-se por estar muito cansada, alegadamente a trabalhar havia mais de 24 horas. Enquanto me fazia perguntas para formalizar o meu internamento, dormitava com a caneta na mão e eu estava apavorada, não só pelo atendimento caricato que me estava a calhar mas, principalmente, por ter vivido os 9 meses da gravidez com a certeza de que iria acabar numa cesariana. Já tinha feito uma anterior e todas as vozes informadas ao meu redor me tinham assegurado que, de certeza, a segunda criança também nasceria assim.

Normalmente as grávidas durante os 9 meses pensam como será o parto e fazem preparação para o dito. Escusado será dizer que eu não fiz nem uma coisa, nem outra, graças à "certeza" de uma segunda cesariana.

A certa altura, como por magia, chega uma nova equipa de médicos e calhou-me um, fresco que nem uma alface, quem informei não estar minimamente preparada para um parto, pelas razões que já mencionei, ao que ele me respondeu, "então prepare-se" com um sorriso de orelha a orelha. E eu preparei-me, que remédio.

Ainda vivi outra situação muito cómica, já na sala de partos, estava um grupo de estudantes de medicina a assistir e um deles começou a empalidecer. E eu, a ter o bebé, avisei a parteira "acho que aquele jovem vai desmaiar". Foi tudo muito engraçado porque parecia mesmo um filme, o que tinha menos graça era eu ser a protagonista... até nascer o Manuel, o verdadeiro personagem principal deste enredo que faz agora 20 anos.

À moda antiga se calhar posso dizer que tenho os filhos criados, agora que o mais "pequenino" tem 20 anos. Pode ser... mas os nossos filhos nunca deixam de ser os nossos bebés e os nossos amores maiores, façam os anos que façam.

9JAN2019


MAIS UM DIA PARA CELEBRAR

Todos os dias são para celebrar mas há dias em que a celebração é a dobrar. Desde que me conheço que o 17 de Janeiro é o dia dos anos do meu irmão Zé, e hoje ele completa 60 anos de vida. 15 meses mais velho do que eu, fomos inseparáveis companheiros de aventuras e brincadeiras durante a infância e, em adultos, somos os melhores amigos, com uma cumplicidade à prova de bala, o maior respeito mútuo, confiança absoluta e confidentes de primeira linha, tanto para os desabafos das nossas tristezas como para as coisas que nos fazem rir à gargalhada.

É mesmo verdade que não precisamos de ter muitos amigos, o importante é ter pelo menos um Amigo com quem possamos sempre contar e eu tenho a sorte de ter, no meu irmão, a primeira pessoa em que penso quando preciso de alguém. Costumo dizer, e algumas pessoas pensam que o digo a brincar, que confio mais nele do que em mim, e é mesmo assim.

Foi o meu irmão quem mais cedo me alertou para as inacreditáveis conspirações, dos criminosos psicopatas que vão ao comando dos nossos destinos. E a primeira que me lembro, de me ter chocado e levado um tempo a perceber, foi o desabar das torres gêmeas, aquela das duas torres que afinal eram três. Ou seja, já levamos uns anos disto mas, até 2020, eu ia só a reboque, não pesquisava nada. Achava que tinha mais que fazer e, inconsciente, achava que o mundo cão em que vivemos não me dizia diretamente respeito. Adorava ouvir as teorias do meu irmão mas confesso que não perdia o sono com elas. Então na altura daquele célebre Setembro, com uma vida tão cheia de afazeres e compromissos, ficava era só agradecida por ter alguém que me abrisse os olhos sobre este "virtuoso" mundo ocidental, mas não entrava em polémicas nem tentava abrir os olhos a ninguém. Ou seja, só assumi a minha "chalupice", como muitos dos meus conhecidos ainda acham, há menos de três anos. O meu irmão é "chalupa" assumido há bem mais de vinte!

Como muitos saberão, a perícia nas escavações das tocas dos coelhos não é o seu único talento, o Zé é pintor e fotógrafo. Aliás primeiro foi fotógrafo e depois passou a dedicar-se mais à pintura. Em breve espero poder anunciar a sua próxima exposição, além do lançamento de um trabalho que temos na calha, feito a quatro mãos.

Hoje vou juntar aqui em casa a família mais chegada para festejarmos, com uma bela jantarada, e não posso estar mais feliz. Escreveu Mia Couto que "cozinhar é uma forma de amar os outros" e essa encaixa-me que nem uma luva, além de ser das coisas que mais gosto de fazer. Outra coisa que adoro fazer é receber as pessoas que mais amo, aqui em casa.

Obrigada Zé pela luz que sempre tens sido na minha vida. Só tenho que te dar graças. E à Vida!

17JAN2023


MANO ZÉ

Hoje faz 56 anos o meu irmão Zé, sempre um ano à minha frente, como uma luz na minha vida. Fizemos uma dupla infernal, em miúdos, com pouco mais de um ano de diferença, crescemos sendo como unha com carne, até hoje e para o resto da vida.

Uma vez, teríamos nós uns 3 e 4 anos, num domingo, preparava-se a família para fazer um piquenique. Já com tudo preparado para o grande acontecimento, nunca fazíamos piqueniques, a Mãe foi à missa ficando o Pai a tomar conta das quatro crianças. Na casa de banho estava um frasco de um xarope para a tosse, muito doce, que nós adorávamos e o Zé teve a ideia, que eu aplaudi de imediato, de bebermos um bocadinho para não nos constiparmos no piquenique.

Quando a Mãe chegou da missa estávamos nós os dois a descer as escadas, lambuzados e felizes. "O que é que os meninos estiveram a beber?" Perguntou a Mãe alarmada, enquanto subia a escada rapidamente, para logo a seguir descobrir, na casa de banho, o frasco de xarope, que anteriormente estava cheio, vazio.

Resultado. Não houve piquenique. Em vez disso fomos para o Hospital de Santa Maria para fazer uma lavagem ao estômago. Ainda mais um pormenor engraçado: Para nos fazerem vomitar , deram-nos uma chávena de azeite para beber. Eu vomitei logo. O Zé bebeu tudo sem se queixar e teve mesmo de ser entubado.

Esta foi, apenas, uma das vezes que fomos parar ao hospital, graças às nossas brincadeiras e cumplicidades infantis. Subíamos às árvores, fazíamos trinta por uma linha, só a cabeça parti três vezes mas, apesar de muito acidentada, não podíamos ter vivido uma infância mais feliz, pela qual estou muito grata.

Parabéns mano Zé! Obrigada por tudo.

17JAN2019


SALVADOR

O amigo que procuro quando ando à procura de mim, o meu porto seguro que está sempre presente mesmo que esteja num continente diferente. O amigo que me faz rir até eu não conseguir dizer nada de tanto gargalhar, de tanto me doer a barriga, o amigo que questiona o que digo, que não embarca à primeira nos meus desvarios e me chama sempre à razão. O amigo que me conhece melhor que ninguém, que sabe das minhas tantas falhas e contradições e, mesmo assim, me quer tão bem. O amigo que não posso amar mais, mais seria paixão e aí correríamos o risco de perder este perfeito equilíbrio e de quebrar, quem sabe, algum coração.

21ABR2019


"(...) Trato-te com Amor e digo-te que te amo amiúde, talvez com algum egoísmo à mistura. Se eu um dia viver o desgosto de tu morreres antes de mim, pelo menos não vou carregar, em cima dessa imensa dor, o fardo do arrependimento de não te ter dito e demonstrado o quanto te amava enquanto podia. (...)"

In "Viagem ao Fundo do meu Coração" (o meu diário)

20JUN2019


MIGUEL GALVÃO

Amigos de toda a vida (1)

Lembro-me da primeira vez que te vi, num fim de tarde de Agosto de 1977, na esplanada do café da barbacã, em Vila Nova de Milfontes. Acabado de regressar de Itália, contavas as tuas aventuras a uma jovem plateia fascinada e cada vez mais numerosa.

Já me tinham falado de ti. Tinhas o carisma natural dos trovadores e dos bons contadores de histórias e toda a gente te admirava. Toda a gente gostava de ti.

Não podia imaginar que passados mais de 40 anos, depois de tanta vida, de tantas aventuras e algumas desventuras, estaria a escrever este texto para te dar os parabéns.

Também não podia sonhar que estávamos destinados a ser amigos para sempre e o quanto valiosa tem sido , para mim, a nossa amizade.

Obrigada.

25JAN2019


PESSOAS DA MINHA VIDA - A DINA

A Dina é uma das pessoas da minha vida pela qual tenho uma amizade inabalável e uma gratidão infinita. Faltava um mês para nascer o meu filho mais novo, quando ela me apareceu, para me ajudar no trabalho da casa. Nunca tinha trabalhado em casa de ninguém, era costureira, trabalhava para um alfaiate, mas desentendeu-se com ele. O patrão tinha também um restaurante, e quando ficou sem cozinheira, e sabendo que a Dina era muito boa entre tachos e panelas, pediu-lhe para ir então para a cozinha, até arranjar alguém. O problema foi que a clientela começou a gabar muito os cozinhados da Dina e o patrão deixou de procurar cozinheira. A Dina, que não é nem nunca foi pessoa que se deixe levar, fez-lhe um ultimato: ou arranjava cozinheiro para ela voltar para a costura, ou ela se despedia. Ele não deve ter acreditado que fosse verdade mas, meu dito, meu feito.

Quis a sorte que lhe tenha chegado aos ouvidos que alguém andava à procura de ajuda para o trabalho doméstico. Quando ela me disse que não tinha experiência, mas que ia fazer o trabalho como fazia em casa dela, não hesitei.

Depois do meu filho nascer, a Dina vinha só meio dia, porque eu estava de licença de maternidade, mas quando se aproximava a data para eu regressar ao trabalho, resolvi propor-lhe passar a tempo inteiro e ficar a tomar conta do bebé, por quem ela já tinha desenvolvido uma estima que não conseguia disfarçar. Com a sua simplicidade demolidora habitual, aceitou, dizendo-me: vou tratá-lo como trato os meus netos.

E foram 17 anos desta relação que pouco tinha da típica relação entre patrões e empregada. Na época, quem me conhece desse tempo sabe, eu dizia a toda a gente que a Dina era a minha melhor amiga. Foi um período em que viajava muito, em trabalho, por vezes tinha formações de vários dias em Espanha ou na Holanda, e a Dina era o pilar da nossa casa, e dos nossos filhos, porque o meu marido também trabalhava como um louco e viajava muito também. Ele, por graça, a quem ela chamava Sr Engenheiro, tratava-a por Dra Dina porque, de facto, quem mandava lá em casa, era ela.

Lembro-me de um dia que fui buscar o meu filho a casa da Dina, porque me tinha atrasado numa reunião de trabalho, e deparar-me com fotografias do meu filho, emolduradas, junto das fotografias dos seus netos. Não é que eu tivesse a mínima dúvida do afecto genuíno, mas aquilo tocou-me, profundamente.

Já faz sete anos que essa relação, mais pessoal do que profissional, acabou. Mas continuamos muito amigas e isto é mesmo para sempre.

A Dina faz hoje anos e eu vou ligar-lhe daqui a pouco. Mas antes tive uma incontrolável vontade de deixar a minha gratidão mais profunda, publicada, à vista de toda a gente.

Na fotografia que ilustra esta pequena história, A Dina e eu, em Novembro passado, quando ela nos convidou, a mim, filhos, respectivos e neta para almoçarmos em sua casa. Um cozido de ir às lágrimas, escusado será dizer. Mas de ir mais às lágrimas, ainda, é mesmo a minha gratidão a pessoas como a Dina, que têm feito da minha vida, uma vida muito mais fácil e muito mais feliz.

6JAN2023


OS DISCOS DE VINIL

Recentemente fui, pela primeira vez, a casa de uns amigos e deparei-me com uma impressionante coleção de discos de vinil. Impressionante não só pela quantidade mas, acima de tudo, pela qualidade, que é como quem diz, uma coleção com muitos discos que eu ouvia nos anos 70 e 80 do século passado. Como se não bastasse esta magnifica coleção, os discos estavam todos organizados por ordem alfabética e em escaparates, como os que existem nas lojas, e que facilitam muito a procura, em vez de se andar à "lupa" à procura, numa estante, das finíssimas "lombadas". A cereja em cima do bolo foi a aparelhagem e as colunas que serviam ao mais alto nível a preciosa coleção.

Curiosamente nos tempos que correm, em que se ouve música através dos Spotify, YouTube, e afins, o vinil volta a estar na moda. Pelo meio ficaram os CD's e os DVD's dos quais pouco vai rezar a história porque entre o vintage e a mais recente tecnologia ficaram sem dúvida entalados, apenas como um degrau tecnológico, que não desperta qualquer interesse nem a mínima nostalgia.

Quando comecei a ouvir música, em meados dos anos 70, ainda não existiam video clips e lembro-me do gosto que era ouvir um disco pela primeira vez, do principio ao fim, claro, e de ficar, o tempo todo, embasbacada a olhar para a capa. Para a minha geração os discos de vinil são o sinónimo da nossa juventude: quando os que agora são velhos amigos eram uns miúdos que ainda tinham avós, quando nos parecia que as nossas vidas iam durar para sempre, quando tudo era feito de descobertas e de sonhos, quando nos apaixonámos pela primeira vez, e tudo era exacerbado, quando achávamos os adultos uns caretas e eram a nossa autoridade preferida para ser desobedecida, quando pensávamos que sabíamos tudo. Arriscávamos muito, pisávamos o risco, as regras pareciam-nos feitas exatamente para não serem cumpridas. Quando ríamos por tudo e por nada, quando nos julgávamos invencíveis, donos e senhores das nossas vidas, e que nada nem ninguém nos ia impedir de continuarmos sempre jovens, feitos de rebeldia, e que essa seria sempre a fonte da nossa maior alegria. Sobre isto tudo sim, bate cá dentro uma certa nostalgia.


ANGOLA, ESSA BELA DESCONHECIDA - PRIMEIRO CAPÍTULO

Em Fevereiro de 2014 voltei a Angola. Na altura o meu marido trabalhava em Luanda e, apesar de ele vir com alguma frequência a Portugal, essa era a segunda vez que eu o visitava. Angola é um país dotado de uma natureza deslumbrante, e de praias paradisíacas, mas está longe de ser o típico destino turístico, aliás, é bastante complicada a entrada no país para qualquer estrangeiro. Além do visto que é necessário para entrar noutros destinos, para visitar Angola é necessária ainda a apresentação de uma "carta de chamada", em que se explica muito bem o que se vai lá fazer, onde se vai ficar, de onde vem o dinheiro para se sustentar, etc. etc.

Angola é um país ainda muito traumatizado pela longa guerra civil que se seguiu à descolonização. Eu pensava que iria encontrar muitos angolanos revoltados com os portugueses, outrora colonos, porque estava esquecida que essa época já tinha terminado há 40 anos e que a esmagadora maioria da população nem se lembra que existiu. O que está muito presente no espírito dos angolanos é a posterior guerra civil, que afetou praticamente todo esse imenso território, exceto Luanda. Graças a esse "oásis" sem guerra, Luanda tornou-se o destino de milhares e milhares de famílias, oriundas de todo o país, que para ali se deslocaram sem quaisquer meios de subsistência, "apenas" para fugir da guerra. Nasceram assim os gigantescos bairros de lata de Luanda e também a sua tremenda insegurança para quem, simplesmente, anda na rua.

Quando o meu marido e eu dissemos a alguns amigos que íamos aproveitar o fim-de-semana prolongado do carnaval para dar um passeio de quatro dias pelo país fora, rumo ao sul, a reação foi de surpresa unânime. "Sozinhos?" e quando respondíamos que sim, éramos brindados com olhares que indicavam que, seguramente, não éramos bons da cabeça. Aparentemente os que tinham vontade de se aventurar pelo país fora, faziam-no sempre em grupos de vários Jeeps, em busca de uma maior segurança. Um carro... nem pensar! Fomos na mesma.

Eu costumo dizer, depois de ter feito esse périplo pelo país, que Angola é uma coisa e Luanda é outra. Além da diferença óbvia refiro-me ao ambiente que se vive, do contraste entre a serenidade absoluta e o estado de alerta constante.

Numa manhã bem cedo fizemos-nos então à estrada, no belíssimo Range Rover que o meu marido tinha em Luanda, no âmbito do seu trabalho. Um carro muito fiável e confortável e, principalmente, muito adequado para os tipos de piso que nós ainda não sabíamos que depois iríamos enfrentar. Eu sentia-me muito feliz pela aventura iminente e, ao mesmo tempo, bastante apreensiva graças às reações das outras pessoas perante o nosso plano maluco, que já referi. Posso já adiantar que foi um dos nossos maiores acertos, em cerca de vinte anos de vida em comum, termos arriscado e termos feito essa viagem. A história dessa aventura será publicada em breve. Esta introdução já vai longa e há que manter válido o espírito de partilhar aqui, apenas, histórias de uma página só.

(Continua)


ANGOLA ESSA BELA DESCONHECIDA - SEGUNDO CAPÍTULO.

DE LUANDA AO LOBITO

Olhamos para o mapa e percebemos que a distância entre as duas cidades ronda os 500 km, ou seja, à primeira vista, nada de especial. Na realidade essa viagem acabou por ser programa para o dia todo. Sair de Luanda foi o primeiro desafio. Não é à toa que o trânsito na capital angolana é considerado dos mais caóticos do mundo. Felizmente o nosso espírito estava o mais positivo possível, por um lado o meu marido já estava na altura mais do que calejado com aquela confusão e, por outro, eu estava embasbacada com tudo o que via, como qualquer turista típica, e a última coisa que me ralava era irmos tão devagarinho. Devemos ter demorado cerca de duas horas desde casa (na zona a que eles chamam ilha mas que na realidade é um istmo) até deixarmos a cidade para trás.

À medida que nos afastávamos da cidade diluía-se o movimento e foi possível , em vários troços, percorrer muitos quilómetros sem nos cruzarmos com um único carro. Angola tem 14 vezes o tamanho de Portugal (devem lembrar-se disto do tempo da escola, os mais velhotes, como eu, que ainda estudaram as colónias na primária) mas tem apenas o triplo das pessoas, ou seja, tem uma baixa densidade populacional, e isso nota-se assim que deixamos a caótica capital. O desafio é a qualidade das estradas, transitáveis mas para ir devagar. Perfeito para ir apreciando a paisagem e até para tirar algumas fotografias, mesmo em andamento.

A paisagem neste percurso é árida e quase sempre plana. A terra tem uma cor avermelhada, e os embondeiros dominam a vegetação. Foi apenas quando nos aproximámos de Porto Amboim, sensivelmente a meio caminho e onde parámos para almoçar, que voltou a aparecer trânsito e ali é tudo ou nada, e mais uma vez apanhámos confusão.

Porto Amboim foi uma surpresa para nós. Num país nada virado para o turismo fomos encontrar uma belíssima praia com vários restaurantes e bonitas esplanadas, em madeira, tudo muito bem arranjado, toldos e espreguiçadeiras, mas, claro, não havia praticamente ninguém. Almoçámos maravilhosamente e num ambiente totalmente inesperado, quando o que tínhamos planeado era uma simples paragem técnica.

A segunda etapa foi tranquila como a primeira, o meu marido a fazer de DJ e eu de máquina fotográfica em punho, constantemente a dizer "Olha" "Olha", e chegámos ao Lobito já ao final da tarde. Ficámos num hotel muito moderno, em cima da praia, com uma vista fantástica mas do mais incaracterístico que se possa imaginar. O que é certo é que era um hotel que podia estar em qualquer país da Europa e, fomos outra vez surpreendidos quando vimos que o hotel tinha um bar na praia, parecia a estrear, e também toldos e espreguiçadeiras... e ninguém, claro.

Instalámos-nos, tomámos um duche e saímos a pé para beber um copo e depois jantar, outra vez lindamente, num restaurante praticamente só para nós. Foi nessa altura que na minha cabeça começou a germinar aquele ideia que referi na capítulo anterior... Luanda é uma coisa e Angola é outra.

(Continua)


ANGOLA ESSA BELA DESCONHECIDA - TERCEIRO CAPÍTULO.

PRAIA, BENGUELA E RESTINGA

O meu companheiro desta viagem é uma pessoa muitíssimo mais destemida e aventureira do que eu. Está à vontade em todo o lado, não quer saber se estamos rodeados de centenas de pessoas e se os únicos dois brancos somos nós. Eu confesso que para mim uma situação deste tipo não é tão confortável, porque chamamos muitíssimo a atenção de toda a gente, que fica a olhar para nós, espantada, como se fossemos uns extraterrestres. Durante a nossa viagem houve alturas em que não tive outro remédio do que me deixar envolver naquelas experiências extremas, noutras vezes deixei-o ir e fiquei na retaguarda.

Uma das vezes em que me deixei ir foi na praia de Benguela. A praia estava à pinha, era fim-de-semana de carnaval e estava toda a gente de folga e a festejar, e nós ali no meio. Não na praia de toalha estendida mas a passear e a tirar fotografias e toda a gente a olhar para nós com um ar muito desconfiado. Uma das vezes em que não embarquei foi um dia mais tarde, quando já tínhamos deixado o Lobito e íamos para o Huambo. Íamos numa estrada magnífica, praticamente sem trânsito, numa paisagem luxuriante de verde, pontilhada por palhotas, aqui e ali, mesmo de filme. A certa altura surge um mercado à beira da estrada, não as típicas duas ou três bancas, uma coisa absolutamente descomunal. Ele resolveu parar para ir fotografar lá para dentro. Nem se via onde aquilo acabava e eu disse que não ia, que ficava no carro e que se ele não voltasse em 15 minutos eu arrancava. É claro que ele foi tirar as fotografias, e que demorou muito mais de 15 minutos, sabia perfeitamente que eu não ia para lado nenhum. Pensando bem, eu arrancava? sozinha? Rumo ao Huambo? Verdade seja dita ele tirou das melhores fotografias de toda a viagem, nesse gigante mercado no local mais inesperado, enquanto eu fiquei no carro a pensar porque é que eu teimava em me meter nestas aventuras.

Voltando à ordem cronológica deste relato, no segundo dia da estadia no Lobito fomos à praia da Caotinha, a sul de Benguela, onde não foi fácil chegar, através de trilhos de terra batida que, a certa altura desapareciam, e já eram dunas de areia, e nós sem fazer a mínima ideia se estávamos em rota ou perdidos. Mas valeu muito a pena, quando chegámos vimos uma praia deserta, de areia branca e água translúcida, daquelas em que parece que a vegetação vai invadir o areal a qualquer momento. Ali acabámos por passar umas deliciosas horas, durante as quais parecia que éramos só nós e o mundo.

No regresso fizemos um passeio pela cidade. Benguela tem cerca de meio milhão de habitantes mas não sentimos qualquer tipo de congestionamento, tirando a praia que apanhámos a abarrotar e que já mencionei. Amplas avenidas, várias zonas ajardinadas e a arquitectura colonial bem presente e nalguns casos bem preservada.

Mas o que nos encheu as medidas foi o bairro da Restinga, no Lobito onde se sente que viajamos no tempo e, por magia, fomos parar aos anos 50 do século passado. Os edifícios dos correios, do cinema, dos restaurantes, as moradias, tudo intacto, como se efetivamente por ali não tivessem passado tantas décadas. Viver essa atmosfera real, porque não é um cenário de ficção, foi das experiências mais fortes e mais marcantes que eu trouxe desta viagem.

(Continua)


ANGOLA ESSA BELA DESCONHECIDA - QUARTO E ÚLTIMO CAPÍTULO

MERGULHO NA NATUREZA, DO PLANETA E DA HUMANIDADE.

Pouco mais de 300 quilómetros separam o Lobito do Huambo e foi, ao longo desse trajeto, que nos deslumbrámos com as paisagens mais bonitas de toda a viagem. Verdes de todos os tons e intensidade, planícies a perder de vista e logo a seguir montanhas imponentes. A presença humana fazia-se notar apenas numa ou noutra aldeia de palhotas que aparecia, aldeias tal e qual as que já existiam no nosso imaginário, e nas pessoas que caminhavam à beira da estrada. As mulheres carregando à cabeça o que compravam ou o que desejavam vender e, quando víamos esses caminhantes, percebíamos que última aldeia tinha passado há muito tempo e depois, a seguinte, aparecia muitos quilómetros depois.

Além da paragem que referi no capítulo anterior, em que nos apareceu um mercado gigantesco à beira da estrada, que o meu condutor achou irresistível ir fotografar, fizemos outra paragem, esta forçada. Naquele meio de coisa nenhuma fomos mandados parar pela polícia e, enquanto encostávamos já sabíamos que íamos ter de pagar qualquer coisa, na gíria angolana, "a gasosa". Digamos que faz parte da cultura do país e até eu, tão esporádica naquele país, já tinha apanhado esta cena em Luanda e nos arredores, no ano anterior. Valeu-me o meu intrépido acompanhante que, com a maior descontração, começou logo a negociar a dita "gasosa" e acabámos por pagar cerca de 10% do que inicialmente nos foi pedido. Convém esclarecer que pagamos, não por termos cometido qualquer infração. Pagamos porque é assim, em Angola.

Chegámos ao Huambo ao fim da manhã e, até ao hotel, mais uma vez um hotel moderno, confortável e incaracterístico, levámos o primeiro murro no estômago, ao ver que atravessávamos uma cidade mártir, devastada por anos e anos de guerra, e que ainda não se recompôs. Olhássemos em que direção fosse, víamos prédios esburacados pelas balas e casas em ruínas. A cidade tem sensivelmente o mesmo número de habitantes de Benguela mas as semelhanças acabam aqui.

Fizemos uma grande caminhada pelo centro e era tudo bastante decadente, mal tratado e triste. O recepcionista do hotel indicou-nos como a maior atração turística a casa de Jonas Savimbi e, evidentemente, quando lá chegámos, vimos uma absoluta ruína. Depois demos uma volta de carro, para vermos os arredores e mais da cidade mas era tudo muito deprimente. Tanto foi assim que acabámos por jantar no hotel, mesmo sabendo que na manhã seguinte regressávamos a casa. O Huambo estava visto e não nos apetecia mais. Uma cidade massacrada pela guerra é um ambiente que perturba e que não deixa ninguém indiferente.

No regresso a casa apanhámos o pior piso de estrada das nossas vidas, buracos que eram autênticas crateras, e o passatempo era desviarmos-nos de uma para não cairmos noutra, logo a seguir. Por outro lado atravessámos uma grande e belíssima floresta , como ainda não tínhamos visto.

Foram 1.750 Km por essa Angola fora. Fizemos esse último troço mais calados do que o habitual, a transbordar de tudo o que nestas linhas tentei transmitir e, principalmente, do que não é possível partilhar por palavras. Voltámos para casa, para essa casa na ilha do cabo, em Luanda, pessoas diferentes daquelas que dali tinham saído, quatro dias antes. Voltámos enriquecidos pelo confronto com uma realidade que não é a nossa. Acredito que voltámos pessoas melhores.



JOAQUIM

Quando oiço alguém dizer que não gosta dos nacionais, de um país qualquer, fico bastante surpreendida com essa generalização, como se as fronteiras geográficas definissem o carácter das pessoas. Não gostar da cultura ou dos costumes de um país ainda vá, agora não gostar de um povo porque nasceu numa determinada zona do mundo, não entendo. Publiquei, ao longo dos quatro textos anteriores, o relato de uma viagem por Angola. Propositadamente, não referi as pessoas. Tive a tentação de descrever como me senti sempre bem vinda e bem tratada, na rua, nos restaurantes, onde quer que fosse, mas não quis escrever que o povo angolano é muito caloroso e afável. Seria cair no outro lado da armadilha com que iniciei este texto. Até me provarem o contrário, acredito que em todo o mundo, em todos os países, há gente boa, gente má e gente assim assim.

Mas tenho muita vontade de escrever a história do angolano que melhor conheci. Quando fui a Angola pela primeira vez, viajei com dois objetivos: O primeiro era passar uns dias com o meu marido, que ali trabalhava na época, e o segundo era comprar o que fizesse falta, tanto de decoração como de quinquilharia, para pôr a casa a funcionar. Apesar de o meu marido gostar muito de conduzir, tinha um motorista para as suas deslocações em Luanda, por uma razão muito simples: qualquer deslocação que se faça de carro, na cidade, acaba por demorar muito tempo, devido ao transito infernal permanente, e ele aproveitava todas as deslocações, por vezes de horas, para continuar a trabalhar.

Foi com o motorista, o Joaquim, que eu acabei por passar muitas horas, enquanto o meu marido ficava na empresa, a trabalhar. Andávamos todos os dias de um lado para o outro, na realidade muitas vezes parados, a tentar ir de um lado para o outro, e o nosso passatempo de eleição foi, sempre, conversar.

O Joaquim tinha à volta de 30 anos, nasceu por isso em plena guerra civil. Vivia com a família num musseque (bairro de lata) da cidade, trabalhava de dia estudava de noite, a sua mulher já tinha terminado os estudos na faculdade e também trabalhava, e tinham duas filhas pequenas. Quem já viveu num ambiente de guerra dá um valor extraordinário à paz. Nós, os outros, valorizamos a paz mas, quer queiramos quer não, é na teoria. Como não sabemos o que é a guerra não damos o verdadeiro valor à paz, não notamos que ela existe, nem agradecemos cada dia. Foi o Joaquim quem me ensinou isso e quem me falou mais sobre a guerra, sobre o êxodo das famílias, em direção a Luanda em busca da paz, sobre o crescimento descontrolado dos musseques, sobre a pobreza que se foi tornando endémica na capital.

O Joaquim falava um português irrepreensível, com um vocabulário muito rico, muito cuidado, que por cá até nos parece fora de moda mas que eu acho encantador. Se temos um idioma deste calibre, dá gosto usá-lo sem cerimónias nem poupanças. Eu contava-lhe histórias de Portugal e ele contava-me histórias de Angola e, apesar de tantas horas no meio daquele trânsito, nunca nos sobrou tempo. Parecia que havia sempre alguma coisa que ainda ficava para contar, para o dia seguinte... E nunca lhe ouvi uma queixa nem qualquer tipo de ressentimento, embora fosse um grande crítico do sistema político em vigor no seu país.

No dia em que regressei a Portugal, ele conduziu-nos, ao meu marido que ficava e a mim que partia, ao aeroporto. Despedi-me dele com muita emoção.

Tínhamos construído durante esses dias uma forte ligação. Atabalhoadamente abri a carteira e dei-lhe todos os kwanzas que tinha. Ele não queria aceitar. Eu disse-lhe que o dinheiro não era para ele, era para as filhas. Lá aceitou. Abracei-o e agradeci-lhe. Ele não esperava esse abraço e comoveu-se. Eu também.

Apesar de saber que é praticamente impossível, gostava muito de saber notícias do meu Amigo Joaquim. Espero que ele e a sua família estejam bem e gostava que ele soubesse que de tudo o que vivi em Angola, foram as nossas conversas que mais prenderam o meu coração. 


UMA HISTÓRIA DENTRO DA HISTÓRIA ANTERIOR

Quando escolhi o hotel em Madrid para fazermos a escala da viagem para Andorra, procurei um que nos desviasse o menos possível do nosso trajeto. Nada pitoresco ou com outro interesse, apenas uma paragem técnica para depois chegarmos, já descansados, ao nosso destino.

Não me lembro do nível de sofisticação dos GPS da época mas quando chegámos a Madrid, já noite cerrada, não consegui encontrar o caminho para o hotel, nem à primeira, nem à segunda, nem à terceira. Seguíamos por uma daquelas vias rápidas que contornam a cidade, víamos o hotel e o seu letreiro em néon na lateral, mas eu não encontrava a saída para lá chegar.

Mais preocupada em transmitir segurança aos meus filhos do que propriamente em encontrar o caminho, andei para trás e para a frente, por essa via rápida, ora a ver passar o hotel à esquerda, ora à direita, enquanto os meus filhos me perguntavam se eu estava perdida. Perdida, eu? Que disparate. Na verdade sentia-me num daqueles filmes fantásticos de realidades paralelas, mas perdida? Nunca.

Lá resolvi fazer as coisas à moda antiga. Sair da via rápida, parar na primeira estação de serviço que me aparecesse e perguntar como podíamos chegar ao hotel.

Com a sorte que normalmente acompanha os audazes e também os aflitos, deparei-me com um simpático cavalheiro que, não só sabia como alcançar o nosso local de pernoita como se prontificou a levar-nos até lá, conduzindo o seu carro diante do nosso para garantir que chegávamos ao destino.

Não me lembro desse meu salvador, nem da sua cara nem do carro que tinha, mas lembro-me que era todo ele feito de charme, e que antes de nos deixar e depois de eu me desfazer em "muchas gracias", me beijou a mão e disse apenas "encantado". Foi um anjo da guarda que nos apareceu ali, um dos muitos que me têm aparecido, ao longo da vida.

(Continua)


UMA AVENTURA NA NEVE

Há doze anos, quando eu era muito mais excêntrica e aventureira do que sou atualmente, resolvi ir passar uma semana de férias na neve, em Canillo, Andorra, com os meus filhos, a Mariana e o Manuel. Como na altura ainda nenhum dos dois tinha sequer idade para ter carta, fiz as viagens de ida e volta sem ter ninguém com quem me revezar. À ida ainda tive o bom senso de fazermos uma escala em Madrid, para jantar e dormir e seguir viagem na manhã seguinte mas, no regresso, com a ideia de aproveitar as férias até à última, fiz a viagem seguida, apenas com paragens para refeições e combustível, e é uma experiência que não aconselho a ninguém. Mesmo com um ambiente sempre divertido, com música, cantorias e jogos de memória, acredito que chega a ser perigoso guiar tantos quilómetros em tão pouco tempo e jurei para nunca mais.

Tirando essa maluquice, as férias foram maravilhosas. Ficámos num pequeno hotel muito bonito e confortável, num espaçoso quarto para os três, com uma decoração à base de madeiras, tecidos com cores terra e padrões suaves e luzes indiretas quase alaranjadas. Outro aspeto muito positivo desse hotel, além de ter um restaurante fabuloso, e que pesou fortemente na minha escolha, era estar situado a poucos metros dos teleféricos que nos levaram para as pistas, todos os dias.

Todos os dias menos no primeiro, em que chegámos perto da hora do almoço e aproveitámos para dar uma volta e conhecer um pouco do povoado. Acabámos por ir a uma pista de gelo, ao fim da tarde e, enquanto a Mariana e eu patinávamos devagar e cuidadosamente pelo ringue, sem nos afastarmos muito dos seus limites, o Manuel, na altura com 9 anos, entrou no ringue como se tivesse nascido com os patins nos pés. Patinava pelo ringue todo, a alta velocidade, de frente, de costas, a fazer piruetas e nós, com uma certa inveja de ele ser tão inconsciente e, graças a isso, se estar a divertir à grande e, claro, muitos mais do que nós.

No dia seguinte lá fomos nós para as pistas e para a primeira aula do curso, previamente contratado. Embora eu já tivesse feito ski, muitos anos antes, resolvi fazer a aula de principiantes com os meus filhos, para me relembrar das noções básicas e, principalmente, para não os perder de vista. Ao fim da primeira aula o meu filho disse que já não queria fazer o resto do curso porque preferia andar a divertir-se com os outros miúdos e, de facto, já estava com uma desenvoltura tal que me fez pensar que tinha sido um disparate contratar um curso também para ele, e que corria mesmo o risco de o perder de vista.

No curso conhecemos uma família de espanhóis, um casal com dois filhos - a miúda da idade da Mariana e o miúdo pouco mais velho que o Manuel - e que, por coincidência, estava hospedados no nosso hotel. O Manuel já tinha o seu companheiro de aventuras e, nos dias seguintes, não foi raro vê-los aparecer, vindos do meio das árvores, para as pistas, ou ouvir o Manuel a gritar "Marcoooó" "Marcoooó" com uma alegria e excitação contagiantes.

O Manuel estava sempre a pedir-me para ir para outras pistas, mais desafiantes, mas às quais, felizmente, só tinha acesso na companhia de um adulto porque envolviam outros meios mecânicos, e muito controlados, para lá chegar. Acabei por ceder, quase no fim das nossas férias, confesso que com alguma apreensão, por levar o meu filho para o nível seguinte da aventura. A Mariana preferiu ficar na sua zona de conforto e lá fomos nós dois descer a mítica pista Rossinyol.

Além de muitas fotografias e de vídeos dessa viagem, que a Mariana depois editou primorosamente e que já revimos várias vezes com tantas gargalhadas, ficaram também muitas memórias inesquecíveis dessa viagem que talvez tenha sido a que envolveu mais coragem da minha parte e, ao mesmo tempo, mais momentos de pura felicidade.

16FEV2021


A LIÇÃO DO DESERTO

Não devemos morrer sem, pelo menos uma vez, ir ao deserto. Olhar à volta, não ver vivalma, só a terra escaldante e o céu que não é azul e também queima. Ter por companhia apenas o som do tempo e do silêncio, respirar fundo e perceber que somos, também nós, um grão de areia, uma partícula infinitamente pequena de pó, no universo.

O deserto fez-me sentir essa grandeza da humildade interior, pela primeira vez, há cerca de vinte anos. Depois disso tive outras experiências, como o alto ou o fundo do mar, planícies ou montanhas geladas, em que confirmei a lição que o deserto me tinha dado, em primeira mão, em que, confrontada com a imensidão que me rodeava, esvaziei-me de mim própria e nunca mais me esqueci da minha insignificância, sempre que não sou capaz de dar nada a ninguém, sempre que me esqueço de partilhar a vida com quem me rodeia.

Corria o ano de 1999 e eu fui bafejada pela sorte, uma vez mais, como tantas vezes na vida, e convidada para uma expedição ao Saara, organizada, nada mais nada menos, pelo saudoso José Megre, que ali tinha estado, já na altura, umas quarenta vezes e que por isso tratava o deserto por tu. São poucos os guias deste gabarito.

Foi uma aventura, não só esse clímax com o deserto, que já descrevi, como as viagens de ida e volta, tornando-se impossível resumir tudo, numa história de uma página só. Muito sumariamente, o conjunto de "jeeps" juntou-se nos arredores de Lisboa e ala para sul, para em Espanha apanharmos o "ferry" para Tanger, onde pernoitámos. No dia seguinte rumo a Fez onde visitámos a Medina mais extraordinária que já vivi e que, só ela, inspira várias histórias. No dia seguinte viajámos para Erfoud, uma cidade já encostada ao deserto e que o único encanto que tem é estar perto do famoso Erg Chebbi, alucinantes e raras dunas de areia. Em modo de nota de rodapé, até essa viagem eu pensava que o deserto era isso, dunas de areia, talvez influenciada por filmes como "Lourenço na Arábia", mas não, essas imagens do deserto são reais mas são a exceção.

Foi nessa altura que entrámos pelo deserto adentro e, depois de um dia inteiro naquele mundo nunca antes imaginado, chegámos ao acampamento e... chovia copiosamente. Até o José Megre, tão batido no Saara, confessou que nunca lhe tinha acontecido apanhar uma chuvada naquelas paragens. A chuva, assim como veio se foi e o único inconveniente que deixou, graças à humidade, foi um intenso cheiro a camelo emanar de dentro das tendas, concretamente dos lençóis de flanela em que nos devíamos deitar mais tarde, para dormir. Ao princípio pensei que não ia ser capaz de dormir ali mas, passadas umas horas, depois do jantar e morta de cansaço, enfiei-me no saco cama entre os benditos lençóis e dormi que nem uma bem aventurada.

No regresso a casa ainda passámos por Ouarzazate, a meca do cinema marroquino com cenários surpreendentes, a incontornável Marraquexe que, só por si, também dá várias histórias e Casablanca, e a sua magnífica e monumental mesquita à beira mar, donde voltámos para Tanger e daí nos despedimos, passados quinze dias, do nosso périplo marroquino.

Só para rematar, quando cheguei a casa tive tempo de tomar um duche, de desfazer a mala e de fazer outra bem diferente. Começava no dia seguinte um novo trabalho, numa nova empresa com novas funções e entrava logo direta para uma formação na Holanda, à qual chegava com um dia de atraso. Quando fui contratada e confrontada com o plano de integração disse que não, só se fosse um dia mais tarde, por causa da viagem a Marrocos. Olharam para mim como se eu fosse uma ave rara mas disseram que sim. Ainda bem que arrisquei e que me disseram que sim. Por um lado não perdi uma das viagens mais marcantes da minha vida e, por outro, não perdi a oportunidade de trabalhar, ao longo dos 12 anos seguintes, na empresa onde fui mais feliz e aprendi mais, profissionalmente, onde ganhei amizades para toda a vida e donde tenho ainda muitas histórias para contar.

A lição do deserto é de uma simplicidade extrema. És só o que dás.

5DEZ2020



VOAR E TER HISTÓRIAS PARA CONTAR

Quando, no verão de 1978, andei de avião pela primeira vez, foi uma emoção. Tinha 14 anos, ia passar dois meses de férias a casa de uns tios em Londres, nunca tinha ido para além da Espanha raiana, e sentia que iniciava uma grande aventura. Sobre essas nove semanas em Inglaterra, numa época em que o Punk convivia alegremente com o "Saturday Night Fever", tenho muitas histórias interessantes para contar, mas será noutra altura. Mal sabia eu que depois desse, que me pareceu tardio, voo inaugural, viria ao longo da vida a voar centenas de vezes, algumas delas por lazer mas, muito mais, por razões de trabalho.

Até muitos anos depois, concretamente até ser mãe, aos 27 anos, achava muito divertido e empolgante andar de avião e, evidentemente, nunca me preocupei com o facto dos aviões andarem lá em cima e as oficinas serem cá em baixo. Depois de nascerem os meus filhos, talvez por achar que se me acontecesse alguma coisa deixaria pessoas a quem faria muita falta, deixei de achar tanta piada aos aviões e aeroportos e passei a encará-los apenas pela sua componente prática, de poder chegar rapidamente a qualquer lado.

Tenho várias histórias peculiares sobre viagens de avião e hoje vou contar a mais assustadora de todas, embora tenha um final feliz, como seguramente já terão adivinhado.

Estávamos no início de 2007 e eu convocada para uma reunião de trabalho em Lanzarote, e em que depois a estadia se estenderia por dois ou três dias, de passeatas e comes e bebes, à boa maneira espanhola. Acontece que o voo Lisboa-Madrid se atrasou e eu perdi o voo seguinte. A Iberia lá arranjou uma solução alternativa, voar para Tenerife e depois apanhar outro voo para Lanzarote. Pensei "Que chatice, um voo extra, vou chegar atrasada, mas paciência". O avião era daqueles colossais que normalmente só se apanham em voos inter-continentais e tudo corria bem, até ao momento em que o piloto informou que, apesar de haver muito vento, íamos em breve aterrar em Tenerife norte.

Ele fez uma tentativa para aterrar mas, rapidamente, voltámos para cima por não conseguir completar a manobra. O ambiente dentro da cabine deteriorou-se, mais rapidamente ainda. Normalmente nas situações menos confortáveis nos voos, tento olhar para os tripulantes para ver se continuam com a sua calma olímpica e, desta vez, além de pálidos, estavam visivelmente nervosos, tentando sorrir, mas não convencendo ninguém. O piloto fez nova comunicação a dizer que ia voltar a tentar aterrar. No meio de um silêncio de morte, sinto uma mão a chegar à minha. Era a senhora que viajava ao meu lado, que me dava a mão e me pedia para eu rezar com ela. Bolas. Eu já não estava a gostar nada daquilo e, nessa altura, já estavam outras pessoas a rezar, algumas a chorar e outras a vomitar. O piloto fez a segunda tentativa de aterragem mas voltou a abortar a manobra e lá voltámos todos para o pé das nuvens, outra vez. O ambiente dentro do avião era caótico, até que o piloto informou que por razões de segurança não iria fazer nova tentativa e que seguíamos para Tenerife Sul. Desata toda a gente a bater palmas. Curiosamente, eu, que até ali não tinha rezado, nem vomitado, nem chorado, também não bati palmas, estava como que anestesiada e só queria sair dali, o mais rapidamente possível.

A aterragem foi pacífica, tudo a bater palmas outra vez, e foi só quando cheguei ao autocarro, que nos levaria à gare, que me caiu na fraqueza toda aquela emoção e desatei num pranto que fez jus ao nome de Madalena, quando à minha volta já estava tudo eufórico, a falar alto e a rir. Resolvi então ligar ao meu marido, para lhe contar o que tinha acontecido, e a resposta dele foi "Mas já aterraram, não já? Porque é que estás a chorar?", dentro daquele pragmatismo tão tipicamente masculino, e eu só respondi "Deixa estar que eu vou ligar à minha Mãe!". Aí sim, foi um telefonema como deve ser, em que pude chorar à vontade, acompanhada de exclamações de compreensão.

Acabei por ficar num hotel ali perto e, só na manhã seguinte, veio um carro que me levou até ao aeroporto de Tenerife norte onde, finalmente, apanhei o voo para Lanzarote. Era uma avioneta velhíssima e a hélices mas eu já não queria saber de nada, já tinha tido a minha dose de pânico na noite anterior. Quando cheguei ao hotel, onde estavam os meus colegas espanhóis à minha espera, é evidente que já tinham terminado toda a componente de trabalho e, a partir dali, seria só diversão. Ainda me gozaram, as desculpas que eu arranjava para me livrar das apresentações intermináveis em "powerpoint", que era mais forte do que eu ser sempre o centro das atenções, etc. etc. E eu, aí sim, só me ria, sentia-me quase em euforia, pelo simples facto de estar viva, e com um sorriso de orelha a orelha perguntei "E não se bebe nada aqui em Lanzarote?".

Acabou por ser um belíssimo fim-de-semana e fiquei com mais uma história para contar.

22NOV2020



VIAGEM À LAPÓNIA, A TERRA ONDE NÃO HÁ ARROZ

Em 2008 fizemos, em família, uma viagem à Finlândia, em pleno inverno. Voámos até Helsínquia e depois novo voo, para Rovaniemi, a capital da Lapónia, 825 km mais a norte, onde naquela altura do ano o sol é muito preguiçoso, e não se levanta mais do que o suficiente para nos iluminar tenuemente.

Foi uma viagem inesquecível, em que nos deparámos com paisagens de cortar a respiração de tanta beleza, e em que vivemos experiências únicas e extraordinárias tais como andar pacatamente de trenó puxado por renas; andar muito menos pacatamente de trenó puxado por Huskies, envolvidos por paisagens de uma imensidão avassaladora; passear de moto de neve por rios gelados; fazer caminhadas e parar, para não congelar, em cabanas onde ardia sempre uma lareira e havia sempre também uma bebida quente, à nossa espera; fazer descidas impróprias para cardíacos, por íngremes colinas, sentados em pequeníssimos trenós, com alguns espalhanços memoráveis pelo meio; viajar a velocidades alucinantes, por estradas geladas, em carrinhas conduzidas por finlandeses que, pelo estilo da condução, pareciam o Ari Vatanen ou o Hannu Mikkola, a gozarem a sua reforma mas em plena forma; dormir num hotel de iglos de vidro (Kakslauttanen) e ter a sorte de ser brindados com uma magnífica aurora boreal... não esquecendo a visita à aldeia do Pai Natal, o apontamento talvez menos interessante para os adultos mas que para as crianças foi, sem dúvida, um dos pontos altos dessa maravilhosa aventura em terras do circulo polar ártico.

Uma viagem que aconselho, a todos os níveis, desde que não se vá a contar com grandes deleites gastronómicos, ou se goste mesmo muito de sopa de cogumelos ou de ervilhas, puré de batata, salmão grelhado e rena estufada, porque não varia para além disto. As refeições mais apreciadas, que também serviram para desenjoar dos pratos do dia, que eram sempre os mesmos, foram uma ida ao Mc Donalds e uma outra a um restaurante italiano. Quando estávamos quase a chegar a casa, vindos do aeroporto, perguntei aos meus filhos o que é que lhes apetecia jantar e eles responderam em uníssono "Arroz", e eu "Arroz com quê?" e já não sei qual deles respondeu "Tanto faz, pode ser só arroz!".

20NOV2020



ALMOÇOS DE DOMINGO

Por mais parecido que seja o cenário, não temos dois almoços iguais.

Os pratos servidos até podem ser repetidos mas as conversas são sempre diferentes e uma surpresa também. Sem assuntos obrigatórios, nunca sabemos o que aí vem, ás vezes vem à baila a cultura, outras vezes a atualidade, ás vezes as recordações de todos e outras os projetos de cada um, ás vezes temos discussões acesas e outras é só palhaçada.

No dia-a-dia escrevemos mensagens, fazemos telefonemas e até vídeo-chamadas mas ao almoço de domingo só estão os que se sentam à mesa, não há telemóveis à mesa, aliás, nem entram telemóveis na sala.

23AGO2020


O TELEFONE

Lembram-se quando em cada casa havia apenas um telefone para a família toda? Depende da geração, uns sim e outros não. Os que se lembram das enciclopédias em vários volumes nas estantes, de abrir um Atlas para tirar dúvidas de geografia, de consultar um dicionário para esclarecer questões de português, ou de poupar nos rolos de 36 fotografias, de esperar vários dias e depois da surpresa que era abrir os envelopes quando as fotografias vinham de revelar, lembram-se de certeza da partilha do analógico objeto.

Quando tocava o telefone não só não sabíamos quem seria como para quem era a chamada e se, por azar, tocava e não era para nós, quando estávamos à espera de um telefonema importante - como para combinar uma saída com os amigos, por exemplo - era uma angústia enquanto não desligassem e a linha voltasse a estar desimpedida.

Lá em casa só irmãos éramos quatro e claro que havia horas de ponta para a utilização do telefone. A Mãe tentava impôr alguma disciplina e dizia para não nos esquecermos que o telefone era só para dar recados e que as pessoas, quando querem conversar, encontram-se e falam livremente o tempo que quiserem... mas isso era a teoria. Na prática havia sempre até quem fosse namorar para o telefone, sem nada de especial para dizer, muito menos para combinar, e depois ainda ficava tempos infindos, antes de desligar, naquele registo "desliga, tu", "desligo, eu", "desligamos os dois ao mesmo tempo" "um, dois, três" e depois não desligava e voltava aos apaixonados sussurros para começar tudo outra vez.

O pior que podia acontecer era tocar o telefone e começarmos a ouvir de cada canto "É para mim, é para mim" porque queria dizer que todos os irmãos estavam à espera de um telefonema ao mesmo tempo e a hipótese da chamada ser para nós ficava automaticamente reduzida a 25%. O feliz contemplado ouvia depois, já de auscultador na mão, invariavelmente, às vezes de vários lados, "despacha-te porque eu estou á espera de uma chamada" mas depois variava a atitude que tinha. Se estivesse só a fazer uma combinação rápida ou estivesse com o espírito fraternal em alta, tudo bem, mas se estivesse com vontade de pôr conversas em dia ou com vontade de ser irritante e fazer pirraça aos restantes, a situação podia-se complicar e nem com os pedidos mais dramáticos do género "eu não vou sair por tua causa" se demovia, sendo escusado apelar à sua solidariedade. Quando finalmente desligava e exclamava alguma coisa do tipo "pronto, já podes usar o telefone" mas a chamada que esperávamos viria de uma cabine telefónica, de alguém que já estava na rua e, com sorte, com moedas no bolso mas, já farto de tentar ligar, muito provavelmente já teria desistido... só nos apetecia esganar esse irmão.

O melhor que podia acontecer era quando já só nos faltava morrer porque afinal não íamos sair, quando já não tínhamos nem a mais ínfima réstia de esperança, quando já nem eram horas para telefonar para casa de alguém, tocava o telefone e ouvíamos "Desce que já estou na cabine à frente de tua casa, estamos cá em baixo à tua espera". Pura felicidade.

14JUL2020



UMA CHAMADA INESPERADA

Ligaram para o meu telemóvel. Número visível mas não identificado pelos contactos. Atendo e oiço" Boa tarde, estou a falar com Madalena David Cardigos de Lemos Bastos?" E eu pensei "Uuuiiii, isto parece um caso sério, nem amigos, conhecidos, operadores de telecomunicações e seja que telemarketing for me trata assim!" Confirmo que sou a própria e oiço "Falo da Polícia Judiciária". "Ah bom, então fico mais descansada!" pelo menos estava explicado o formalismo inicial, pensei, e depois disse "e em que é que eu vos posso ajudar?" Afinal era por causa de uma nota falsa que eu tentei depositar no ano passado. Dito assim soa mal, mas é óbvio que eu não sabia que levava uma nota falsa no depósito que ia fazer. O último sítio onde os falsificadores levam notas da sua safra é aos bancos porque são sempre detetadas pelas máquinas de contagem. Nunca se sabe é o quanto já circularam e por quantas mãos já passaram até serem apanhadas, daí ser tão ingrato o trabalho, da polícia judiciária, de ligar para a pessoa que fez o depósito para perguntar se tem ideia de quem lhe poderá ter passado a nota falsa, no entanto, têm que começar por algum lado e o que é certo é que geralmente acabam por ter bons resultados.

3JUN2020



A LUZ DA MEMÓRIA

Daqui a dois dias faço 56 anos, quer dizer que começa o meu quinquagésimo sétimo ano de vida. Penso sempre assim e quando faço anos não me sinto mais velha porque já passei um ano inteiro com esse número na cabeça. Além disso, envelhecer é uma ideia que não me aflige, pelo contrário, acho que é uma sorte viver muitos anos porque, se tudo correr bem interiormente, vamos sendo a cada ano pessoas melhores, tanto para os outros como para nós próprios.

Durante os últimos doze meses vivi momentos muito bons e outros muito maus, creio eu, como toda a gente. Felizmente a nossa cabeça, no que toca a memória, é inteligentemente seletiva e, na hora de tentar fazer um balanço, pesam-nos muito mais as experiências positivas. É evidente que vamos sendo feitos de todas as emoções pelas quais passámos e que os desgostos, desapontamentos e tristezas também fazem parte dessa construção mas, depois de ultrapassados, devem apenas ficar calados no fundo de nós e não fazer parte da memória viva que, para nosso bem e dos que nos rodeiam, deve ser feita de luz e boas recordações.

Neste último ano tive uma experiência nova que foi profundamente transformadora e é a história que eu hoje vou contar.

No verão passei duas semanas, uma em Julho e outra em Setembro, em casa de uma tia minha que sofre de demência. Pelo que já tinha lido sobre a demência sabia que existem vários tipos de comportamentos e estados associados à doença mas, apesar disso, foi muito intenso o confronto com aquela realidade. A minha tia vive o presente intensamente, tem conversas sobre qualquer assunto, como qualquer um de nós e, o que mais me impressionou é que sabe e, paradoxalmente, não se esquece que não tem memória. Às vezes ao serão eu lia-lhe algumas das minhas histórias e ela ficava encantada, pedia que eu lhe lesse mais uma e depois outra e no fim dizia-me sempre "Não te importas de me ler essas histórias amanhã outra vez? porque eu vou me esquecer".

Decidi então escrever um diário durante aquela primeira semana em Julho e, antes de voltar para Lisboa, dei-lhe o manuscrito para que ela pudesse reler e relembrar a semana tão feliz que tínhamos vivido. Tirei também várias fotografias que depois imprimi e, quando voltei em Setembro, dei-lhas para juntar ao diário que, para grande surpresa minha, ela sabia onde estava.

Em Setembro, no entanto, encontrei-a muito debilitada. O médico tinha-lhe alterado a medicação e andava com falta de apetite e quando comia, enjoava e voltava tudo cá para fora. Assustei-me e no dia seguinte levei-a às urgências, muito magra como sempre mas muito fraca também. Esteve a manhã toda a soro, tiraram-lhe o medicamento que lhe estava a fazer mal, voltámos para casa e começou a melhorar mas, o mais incrível é que quando chegámos a casa ela não se lembrava onde tínhamos ido e perguntou: "Fomos tomar café e comprar "O Público", onde é que deixámos o jornal?"

Muito comovente para mim era ela estar constantemente a dizer-me, incontáveis vezes por dia, por exemplo, "Gosto tanto de te ter cá" e "Volta sempre, está bem?"

Depois desta experiência, quando oiço aquela frase lapidar que a vida é o presente, e não é nem o passado nem o futuro, tenho as maiores reservas porque o presente só existe cimentado de memórias e - de preferência boas - recordações e também de projectos e sonhos nem que seja apenas voltar a estar com alguém e dar aquele abraço apertado há tanto adiado.

23ABR2020



Os cinco em Veneza - Uma viagem inesquecível com a Mãe

Em Outubro de 2007, os meus irmãos e eu, já então todos nos quarenta, fizemos uma viagem a Veneza com a nossa Mãe. Na altura o nosso Pai vivia uma fase muito avançada da sua doença degenerativa, totalmente dependente de quem o cuidava, a nossa Mãe. Várias vezes tentámos convencer a Mãe que era um trabalho muito violento para ela, cuidar do Pai em casa, que talvez fosse melhor o Pai ir para uma instituição onde o pudessem acompanhar, evitando todo esse peso sobre os seus ombros, mas a Mãe nem queria ouvir falar numa ideia dessas. Achava, e com razão, que o Pai sabia que estava em casa e era em casa que ele queria estar e onde se sentia bem. Na verdade o Pai ficou em casa até ao fim, em Setembro de 2010.

Essa viagem, durante a qual nós largámos os nossos filhos e a Mãe o nosso Pai acabou por ser, não só a pausa que queríamos proporcionar à Mãe como absolutamente inesquecível para todos nós. Começando logo pela viagem de táxi - aquático, claro - desde o aeroporto até à Ponte do Rialto, chovia e havia vento e as ondas durante o trajeto deram logo a tónica da aventura que ia começar. Alugámos um apartamento num beco, perto da dita ponte, com vista para as traseiras dos outros prédios, mas, além de bem localizado, muito confortável.

Durante três dias calcorreámos todos os recantos daquela mítica cidade, com a vantagem de haver poucos turistas, por já estarmos no Outono. Fizemos o Grand Canal de autocarro, andámos de gôndola, como não podia deixar de ser, fazíamos as refeições nos restaurantes mais castiços e éramos de facto um grupo sui generis, de quatro filhos maduros e a sua Mãe.

Aos serões, a Mãe estudava o roteiro para o dia seguinte e nós jogávamos King como no tempo em que vivíamos todos na mesma casa. De manhã relembrávamos que uns de nós somos seres matinais e outros nem por isso e tudo era motivo para risos e gargalhadas. E a Mãe, durante esses dias, imensamente feliz e a viver intensamente cada momento, já consciente de estar a criar grandes recordações, como todos nós.

Escrevi esta pequena história como homenagem ao Amor profundo e generoso da Mãe pelo Pai. Hoje a Mãe faz 86 anos. Continua maravilhosamente bem e nós abençoados por isso.

17ABR2020



BREXIT

O ponto final do Brexit relembrou-me uma anedota real. Em 1978 passei dois meses das férias de Verão em Londres, em casa de uns tios, para aperfeiçoar o inglês e, um belo dia, a ver a previsão meteorológica na BBC, ouvi o fleumático apresentador afirmar que o Continente estava isolado devido ao nevoeiro cerrado no Canal da Mancha.

1FEV2020


PASSAGEM DE ANO E UMA HISTÓRIA DO ARCO DA VELHA

Há um ano resolvi passá-lo sozinha pela primeira vez e este ano passei-o a trabalhar, outra estreia... ainda não sei como é que vou passar o próximo, quem sabe a fazer qualquer coisa que nunca fiz, pela terceira vez consecutiva, e tornar esta recente tendência num hábito contra rotina, passe a aparente contradição.

No hotel onde trabalho havia jantar e ceia para celebrar a passagem de ano e faltava alguém para receber os convivas e eu, que exerço ali funções que nada têm a ver com isso, ofereci-me para desempenhar o papel. Normalmente no trabalho estou mergulhada em números e papelada e foi muito interessante esta passagem para a realidade com os clientes, a azáfama do serviço na sala e o frenesim na cozinha (na gíria deles, o lodo), enfim, uma realidade que me faltava viver. Tivemos casa cheia e uma equipa primorosa a garantir um excelente desempenho e foi um imenso prazer passar o ano a trabalhar e, à laia de cereja em cima do bolo, mais uma história para contar.

Quase no fim do serão um jovem casal pagou e saiu e pouco depois a senhora voltou e entregou-me um bilhete que alguém tinha deixado no bolso do casaco do seu namorado. Eu li-o e não queria acreditar, tinha o número de um dos quartos do hotel, uma identificação de conta do Instagram e o número de um telemóvel. Confesso que fiquei sem palavras quando a senhora me disse que tentasse avisar aquela pessoa que o dono do casaco era comprometido. Estava eu ainda a assimilar a vergonha alheia e até alguma revolta pela mancha na reputação do nosso charmoso hotel quando o colega que estava ao meu lado abriu o Instagram, digitou a identificação escrita no bilhete e reconhecemos imediatamente a hóspede autora do dito. Sem mais delongas, vai disparado ao encontro dela, que ainda estava sentada à mesa com uma amiga, e devolveu-lhe o bilhete dizendo-lhe que a namorada da pessoa a quem ela o tinha deixado tinha pedido para a informar que ele não estava interessado.

No regresso a casa liguei a uma das sócias do restaurante, que estava ainda a trabalhar num restaurante que abriu mais recentemente, daí não poder estar ali e eu ter colmatado a sua falta, para lhe dizer que tudo tinha corrido lindamente e que até tinha uma história macaca para contar. Depois da nossa risota pegada, disse ela: "Veja lá se escreve esta história na sua página".

Começo assim o ano com uma história do arco da velha. Isto promete.

1JAN2020



NATAL CONTRA A CORRENTE

Há muitos anos uma tia minha pensou que no Natal fazia mais sentido não dar presentes a nenhum dos familiares e amigos e, em vez disso, canalizar, o que ia gastar com essas compras, para pessoas verdadeiramente necessitadas. Na época os meus primos, irmãos e eu ainda éramos miúdos e não gostámos nada dessa ideia e até outros adultos acharam má essa inovação por ir tão contra à tradição.

Os anos foram passando e as mentalidades foram mudando. A certa altura na família já só se davam presentes às crianças e à medida que a fúria consumista à nossa volta crescia, a quantidade de presentes à volta da nossa árvore de Natal diminuía.

Neste Natal consegui pela primeira vez não comprar um único presente e cheguei finalmente ao patamar da minha tia, mais de quarenta anos depois, e às razões que ela evocou então - o verdadeiro espírito cristão da solidariedade e apoio a quem mais precisa - juntei outros motivos, mais modernos e ecológicos, como não podia deixar de ser.

Os meus filhos e eu vivemos a última consoada em casa, veio a minha Mãe e outros muito chegados e, embalados com boas conversas e risos, partilhámos calorosos momentos e uma apetitosa e nada extravagante ceia de Natal. No dia seguinte, não havia mais desperdícios para colocar no ecoponto e no lixo comum do que em qualquer outro dia do ano.

Para muitas pessoas isto de celebrar o Natal sem presentes, só com presenças, pode parecer radical e até bizarro mas acreditem que me sinto muito feliz libertada de compras desnecessárias e poder assim ajudar mais quem mais precisa... incluindo o nosso querido planeta.

26DEZ2019


MIGUEL SOUSA TAVARES

É um escritor/jornalista/repórter/comentador que me fascina. Embora tantas vezes discorde dos seus pontos de vista, as suas fluidez e clareza narrativas, o humor e a inteligência que lhe está associada, a liberdade com que defende as suas ideias, totalmente "nas tintas" para o que os outros possam pensar, são para mim ingredientes absolutamente irresistíveis. Li todos os seus livros, leio todos os seus artigos com que me deparo e, apesar de raramente assistir a telejornais porque me falta a paciência para os critérios do que verdadeiramente importa, se vejo algum, só para me lembrar porque é que normalmente não vejo, vejo o da TVI à 2ª Feira porque, ao menos, tenho o gosto de o ver e de o ouvir falar.

Hoje estava eu civicamente na fila para votar e apareceu o Miguel Sousa Tavares, em três dimensões e carne e osso, para votar também. Eu nem sabia que éramos vizinhos e talvez daí a minha grande surpresa e logo a seguir o dilema: "vou cumprimentá-lo" "Não vou nada, que parvoíce" "vou, se calhar não volto a ter a oportunidade de lhe agradecer tudo o que tem escrito e o prazer que me dá" "não vou, toda a gente o reconheceu e ninguém o incomodou, não vou ser seu" "vou" "não vou" "vou" ... não fui.

Estou tão arrependida. Eu já devia saber que, tendencialmente, nos arrependemos é do que deixamos por dizer ou por fazer mas, uma coisa é certa, se me cruzar com ele, outra vez, aqui no bairro ou noutro sítio qualquer, vou mesmo cumprimentá-lo, agradecer-lhe por tudo o que tem partilhado e até sou capaz de lhe pedir um abraço...um abraço é capaz de ser um bocado puxado porque ele não me conhece, embora eu o conheça tão bem. Mesmo assim, vou arriscar porque mais vale cair no ridículo do que deixar por dizer o que nos vai na alma. Além disso, agradecer e apreciar faz falta ao Mundo... e à vida das pessoas também.

6OUT2019


FREITAS DO AMARAL

Há uns cinco anos, apesar do trânsito caótico de final do dia, fui à Feira do Livro, no Parque Eduardo VII, propositadamente para assistir ao lançamento de um livro de Domingos Amaral, escritor de quem leio, tudo o que publica, com muito prazer. Lembro-me que chuviscava e já escurecia quando acabou a apresentação e, enquanto eu esperava na fila para que o meu livro fosse autografado, o Pai do escritor - o próprio Prof. Freitas do Amaral - viu-me, levantou-se e veio cumprimentar-me e dizer que tinha a certeza que me conhecia mas não se lembrava de onde. Eu garanti-lhe que não, aleguei que se eu o conhecesse pessoalmente não iria ter nenhuma dúvida sobre isso, sendo ele uma figura pública tão conhecida. Deu uma gargalhada.

Lembrei-me que uma tia minha, com quem eu sou muito parecida, segundo toda a gente, andou com ele na Escola Avé Maria e contei-lhe. Essa minha tia vive na Escócia desde antes do 25 de Abril de 1974 e, numa das suas visitas a Portugal, pouco depois da revolução, ouvi-a exclamar: "Olha o Diogo na televisão" e foi assim que fiquei a saber que tinham andado juntos na escola.

"Eu sabia que a sua cara me era muito familiar, dê cá um abraço", perguntou-me depois como é que eu me chamava, aproveitei para lhe dar os parabéns pela obra do filho que, entretanto, assistia a esta conversa e era ele quem esperava agora para autografar o meu exemplar do seu livro. Despedi-me do professor com mais um abraço como se fossemos velhos conhecidos. Achei-o encantador. Trouxe para casa esta memória e uma belíssima dedicatória, também.

Hoje, com "A Bicicleta que Fugiu dos Alemães" em mãos, outro livro de Domingos Amaral cuja leitura estava mesmo a acabar, soube que tinha morrido o seu Pai e tive vontade de contar esta história, homenageando assim a cálida simpatia de um grande senhor.

3OUT2019


CARRIS - anedotas de outros tempos.

Sou grande adepta dos transportes públicos em Lisboa, começando pela causa ecológica, acabando no descanso de não ter de andar à procura de lugar para estacionar nem conduzir em modo pára arranca, e passando pelo precioso tempo garantido para pôr as leituras em dia. Tenho, além de tudo isto, a sorte de existirem duas carreiras de autocarro, porta a porta, de casa para o trabalho, o que me permite almoçar em casa, todos os dias.

Mas nada é perfeito na vida e hoje vivi uma situação muito desconfortável em que o passageiro ao meu lado estava muito chegado a mim. Não me queixei, limitei-me a colocar o cotovelo dobrado na sua direção além de, seguramente, manter uma expressão facial, no mínimo, de grande enfado.

Esta situação lembrou-me duas histórias do tempo em que os autocarros ainda tinham revisores que nos vendiam e picavam os bilhetes.

Uma amiga da família, sem papas na língua, ao passar por algo semelhante, chamou o revisor e disse, alto e bom som:

- por favor indique a porta a este senhor porque parece que ele está a tentar sair pela janela.

E, noutra ocasião similar, quando o revisor se aproximou para cobrar os bilhetes, disse:

- um bilhete para mim e meio bilhete para este senhor que vai ao colo.

29AGO2019


UMA HISTÓRIA DO MEU DIÁRIO

Não há dúvida: qualquer assunto assume maiores proporções quando nos toca diretamente. Ouvimos e lemos que o Serviço Nacional de Saúde tem graves problemas orçamentais mas, estando todo o nosso entorno de boa saúde, tomamos conhecimento e canalizamos a nossa atenção para temas mais abrangentes como, por exemplo, a sustentabilidade do planeta ou a catástrofe humanitária no Iémen. Eis se não quando uma pessoa da nossa esfera afectiva é internada de urgência num hospital público e somos obrigados então a desviar a nossa atenção das causas planetárias e da humanidade em geral para nos concentrarmos no que nos é mais chegado, ainda, ao coração.

Senti necessidade de escrever esta história - daquelas das quais se costuma dizer "contado ninguém acredita" - exatamente porque se me contassem eu teria dificuldade em acreditar.

Uma grávida de 28 semanas, a perder líquido amniótico, dá entrada nas urgências do Hospital de São Francisco Xavier mas só passadas 48 horas é vista por um médico. O médico prescreve então uma ecografia que julgamos imediata mas, passadas algumas horas, uma enfermeira informa que só daí a três ou quatro dias é que a ecografia poderá ser feita e, pouco depois, como se não bastasse, descobrimos que durante o fim-de-semana não existe um único médico no serviço materno fetal. Em caso de emergência chama-se um médico das urgências e, nem de propósito, uma enfermeira não consegue apanhar o rimo cardíaco do feto da grávida ali do lado, liga para as urgências mas ninguém atendeu, teve então a louvável iniciativa de sair dali disparada, a empurrar a cama da grávida pelos corredores fora, para dentro do elevador até ao serviço de urgências, em busca de quem as pudesse acudir.

Sabiam que isto podia acontecer hoje em Lisboa, num hospital público que tem uma maternidade de referência?

               13JUL2019


ACASOS

Gosto de acasos e de encontros inesperados, de ir por uma rua onde não costumo passar, a essa hora, e dar de caras com um amigo, de toda a vida, que não encontro amiúde e que depois me confessa que raramente passa por ali, também. Vinha ele da Feira do Livro, carregado de futuras leituras e com uma inequívoca expressão de satisfação que antecipava o prazer prometido que ali trazia, escondido, enquanto eu - sem cerimónias e com a ansiosa curiosidade dos leitores que sofrem por ainda existirem tantos bons livros para ler e cada vez menos tempo para o fazer - lhe ia tirando do saco os livros, um a um, e ali estávamos nós, num fim de tarde no centro de Lisboa, a olhar e a comentar, embevecidos, as sucessivas capas de livros, com o enlevo de quem partilha hoje em dia, por exemplo, as fotografias mais recentes dos filhos e dos netos.

O nosso encontro foi muito mais fugaz do que, seguramente, ambos desejaríamos e ficaram no ar, e logo levadas pelo momento seguinte, aquelas boas intenções de que temos que nos ver mais vezes e combinar qualquer coisa.

Quando nos despedimos, e cada um seguiu o seu caminho, pensei que foi uma pena, hoje em dia que tudo se filma e grava, que este encontro não tivesse ficado registado. Apareceriam duas pessoas que se encontram por acaso, mostram primeiro surpresa e depois alegria e, ato continuo, começam a tirar livros de um saco com o entusiasmo das crianças a desembrulhar presentes ou a encontrar guloseimas. Sem imagens e sem som, fica a história de uma página só.

30MAI2019


SOBRE A VIAGEM À INDIA

Era um plano bastante desafiante, visitar Deli, Jaipur, Agra, Varanasi e Daramsala, em dez dias. Mas, em cada paragem, foi afinal possível estar, com tempo, sentir a atmosfera local e fazer parte dela, em cada cidade pudemos passear pelas ruas sem nunca ter pressa. Chegámos até a ir ao cinema em Jaipur (à que é considerada a segunda melhor sala de cinema do mundo). Vimos o nascer do dia no Taj Mahal onde, àquela hora, estávamos sozinhos, andámos de barco a remos pelo rio Ganges em Varanasi, também nessa hora mágica. Passámos uma tarde com elefantes (num santuário onde são muito bem tratados), demos-lhes banho, comida e fizemos um grande passeio com eles. Visitámos um mosteiro abandonado que hoje é habitado por milhares de macacos. Fizemos uma caminhada pelos Himalaias acima em Daramsala... Andámos a pé, de carro, de riquexó, de combóio (uma viagem noturna atravessando a Índia profunda), de barco e de avião. Éramos inicialmente um grupo de viajantes desconhecidos entre si, todos muito diferentes, que se tornou desde o primeiro dia, com toda a naturalidade, numa equipa coesa e unida, ninguém empatava ninguém e todos contribuíram para que esta fosse uma viagem perfeita. Sem um "se" nem um "mas". Inesquecível tudo o que vivi nesses dez dias. Um tesouro tudo o que me ficou.


INDIANOS

O que mais me marcou durante a minha recente viagem à Índia foram os indianos, na sua essência, genuinamente pacíficos, amáveis e educados.

Se formos na rua e cruzarmos o olhar com um indiano, o que vemos a seguir, infalivelmente, é um sorriso.

Vive muita gente na Índia, são à volta de 1.339.000.000, (recordando que em Portugal somos cerca de 10.000.000). Sem me alargar em enfadonhas estatísticas, país com mais gente só a China (cerca de 1.382.000.000) mas que como é muito maior em área, tem uma densidade populacional (145 pessoas por km2) abaixo da metade da da Índia. Na Índia são mais de 380 pessoas por km2 e é preciso não esquecer que há muitos km2 sem ninguém, como por exemplo grande parte da área dos Himalayas.

Entendemos assim que estamos diante, não só do país com o maior desafio demográfico do mundo, como de uma cultura muito especial pois, se assim não fosse, com tanta gente e tão amontoada, maioritariamente pobre e muito pobre, já não existiria nem cultura nem gente porque já teriam acabado com tudo, à pancada.

Como afirmou um personagem de um livro que li sobre a Índia "(...) é provável que o Amor não tenha sido inventado na Índia mas, seguramente, foi na Índia que se aperfeiçoou (...)"

10MAR2019


DHARAMSHALA, O TIBETE NA ÍNDIA OU A ÍNDIA TIBETANA

Todos nós já ouvimos falar de Dalai Lama, muitos sabemos que é um líder religioso tibetano mas quase ninguém sabe que vive exilado há 59 anos, numa cidade no noroeste da Índia, nos Himalaias, chamada Dharamshala.

É verdade. A China invadiu o Tibete, anexou o território e procurou acabar com tudo o que remetesse à cultura e tradição tibetana, começando, obviamente, pela religião, o budismo tibetano, que professa princípios tão polémicos e perigosos como a Paz, o Amor, a Tolerância e a Compreensão.

Para se ter uma ideia da violência desta invasão, hoje em dia, qualquer pessoa no Tibete que seja apanhada com uma fotografia do Dalai Lama é presa.

O que é mais surpreendente, ou talvez não, é que o Mundo não quer saber do Tibete para nada. Para além de alguns grupos ativistas olhados sempre de lado pelos governantes das grandes potências, nenhuma instituição do sistema, como as Nações Unidas, por exemplo, se atreveu a enfrentar a China, o País invasor, para pô-la na ordem. Ou seja, às vezes invadir um país é gravíssimo e países terceiros podem e devem intervir, outras vezes o Mundo olha para o lado e assobia.

Visitei recentemente Dharamshala onde existe o maior templo tibetano fora do Tibete e onde vive o 14º Dalai Lama há, como referi, 59 anos. Tivemos a sorte de assistir a uma celebração no templo e depois, passeando pela cidade, respirar aquela ambiente de paz e harmonia, apesar de Dharamshala ser tão caótica como qualquer cidade indiana, com a agravante de se ter tornado um destino de muitos forasteiros informados, que chegam com a curiosidade de visitar a terra de Dalai Lama.

Como se não bastasse toda a carga mística associada às ruas repletas de monges, com as suas túnicas vermelho escuras, e estarmos numa cidade que só ainda não é histórica porque a história está por fazer, Dharamshala fica nos Himalaias, essas deslumbrantes montanhas também conhecidas como o tecto do Mundo.

7ABR2019


GANESHA, O DEUS COM CABEÇA DE ELEFANTE

O Hinduísmo, que procura o conhecimento e o entendimento da verdade e a essência do universo, existe há mais de 4.000 anos, é a religião conhecida mais antiga do mundo e 95% dos seus seguidores vivem na Índia.

Atrevo-me a afirmar, sem grandes riscos, que nem o mais erudito hindu conhece o nome de todos os deuses do Hinduísmo. São milhares, existem deuses para tudo mas, é claro, existe um grupo de deuses mais importantes e que todos os hindus conhecem. Brahman é o Deus supremo, não tem forma nem limites por ser omnipotente e eterno. Brahman é representado por três deuses principais que, esses sim, já têm forma física: Brahma, o criador, Vishnu o preservador e Shiva o destruidor do universo.

A propósito da forma física dos deuses hindus existe um muito especial, muito venerado pelos hindus e muitas vezes representado em pinturas e estátuas que é o Ganesha, o deus com cabeça de elefante. Não fazendo parte da trindade principal é, segundo a lenda, filho de Shiva e de Parvati e foi o seu Pai, num acesso de fúria, que lhe cortou a cabeça e, logo a seguir, num rebate de arrependimento, saiu em busca de uma solução. O primeiro animal que encontrou foi um elefante, cortou-lhe a cabeça para a colocar no seu filho e assim lhe devolver a vida.

Ganesha é o deus patrono das artes, do intelecto e da sabedoria e, principalmente, é considerado o destruidor de obstáculos sendo assim natural que seja tão adorado e que esteja representado na índia, por todo o lado.

19ABR2019


VARANASI

Já tinha alguns dias de viagem pela Índia quando cheguei a Varanasi e foi um acerto, ninguém deve chegar aqui, de rompante, vindo diretamente do Ocidente.

A cidade de Varanasi, do alto dos seus mais de cinco mil anos de existência e tendo a seus pés o languido e majestoso rio Ganges, é a expressão maior da religião hindu. Qualquer hindu ambiciona ser cremado à beira do Ganges, em Varanasi. Acredita que sendo cremado neste local sagrado fica livre do Karma e da reencarnação sucessiva, alcançando assim Moksha, a Luz e a Paz eternas.

Os mortos chegam de várias partes da Índia, em todo o tipo de transporte que se possa imaginar. Só os homens são autorizados a assistir a cremação dos seus familiares porque se acredita que as mulheres não saberiam comportar-se dignamente, isto é, choros e queixumes não se admitem. Quando chegam, os familiares compram a lenha, constantemente transportada em barcos e amontoada à volta da zona das piras, em pilhas de vários metros de altura, e, depois, esperam que chegue a vez do seu ente querido ser libertado, pelo fogo, da vida terrena. Há famílias que não têm dinheiro para comprar lenha suficiente e é por isso que não é invulgar ver ossos não totalmente cremados, a boiar no rio sagrado. A chama, também sagrada, que ateia as piras, está sempre acesa e, curiosamente, a chama tem dono e ele é o homem mais rico de Varanasi.

Em todos os recantos da cidade, tanto à beira rio como nas labirínticas, coloridas e movimentadas ruas e ruelas, percebemos que estamos na casa preferida dos Sadhus, homens sagrados, que encarnam a espiritualidade hindu com uma intensidade quase divina e que são encarados com tanta admiração e devoção, como respeito e temor. Toda a gente deseja a benção de um Sadhu e ninguém se atreve a desagradar a um.

Todos os dias, desde antes de nascer e até depois do sol se pôr, Varanasi vive em permanente ritual de celebração do sagrado e a efervescência do ambiente envolvente não permite deixar ninguém indiferente.

25MAI2019


TAJ MAHAL

O Taj Mahal foi construído no século XVII, em Agra, nas margens do Rio Yamuna, por ordem do Imperador Shan Jahan, como mausoléu da sua terceira mulher, Aryumand Banu Begam, que morreu aos 39 anos, a dar à luz o 14º filho de ambos.

Diz a lenda que Aryumand Banu Began era muito bela e que durante os dezanove anos de casamento, o Imperador, teve por ela uma absoluta paixão, chamando-lhe Muntaz Mahal que significa "jóia do palácio".

A construção do Taj Mahal (Coroa de Mahal) com o esforço de mais de 20.000 homens, durou cerca de vinte anos e foram utilizados os materiais mais belos e nobres que fosse possível importar, tais como mármore branco, ouro, cristal, jade, ametistas, turquesas e lápis-lazuli.

A intenção do imperador era construir depois um mausoléu negro, com a mesma dimensão e linhas do Taj Mahal, na outra margem do rio para si próprio, mas parece que os filhos não acharam boa ideia que o Pai gastasse outra astronómica fortuna num segundo monumento e acabaram por conseguir dá-lo como louco e prendê-lo no forte de Agra, onde o seu único consolo foi avistar, pela única janela da sua cela, a Coroa de Mahal, até ao fim dos seus dias.

Acabou Shan Jahan por ser sepultado no Taj Mahal, ao lado da sua amada, sendo assim, o seu túmulo, a única fuga à perfeita simetria de toda a magnífica construção.

Por si só avassaladoramente belo e majestoso, o Taj Mahal vive assim o passar dos séculos, envolto também numa história de um grandioso amor e de uma imensa dor, o que lhe dá uma intensa dimensão emocional que tive o privilégio de sentir, quando o visitei, ao nascer de um ameno dia de Fevereiro passado, tranquilamente, antes da entrada dos milhares de turistas que diariamente povoam os seus jardins e interiores, talvez também em busca de se sentirem perto desse mítico amor.

13MAR2019


COMPRAR UM SARI EM JAIPUR

Aproximava-se o dia da nossa visita ao Taj Mahal e as minhas amigas e eu decidimos ir comprar um sari para fazermos a visita iminente, com uma roupa a condizer com o momento e o cenário envolvente. Simplesmente não nos apeteceu usar as indumentárias de típicas turistas, estilo "coronel tapioca", para visitar o Taj Mahal.

Estávamos então em Jaipur e fomos provavelmente à melhor loja de saris da cidade, composta por várias salas, amplas, com as paredes forradas de cima a baixo com prateleiras cheias de variadíssimos tipos de tecidos, em todos os tons possíveis, lisos e com padrões, meticulosamente dobrados.

Convidaram-nos a sentar num comprido banco corrido, forrado a veludo, e serviram-nos um delicioso e aromático chai. Enquanto o vendedor ia descrevendo as várias qualidades de tecidos, os seus três ajudantes, jovens rapazes sorridentes, elegantes e descalços, iam percorrendo a passerelle diante do nosso banco, desdobrando cada peça com tanta desenvoltura e graça como se de uma coreografia se tratasse. Mesmo tendo presente que cada peça de tecido para fazer um sari tem, no mínimo, seis metros de comprimento, é difícil imaginar o inesperado espectáculo de movimento e cor a que ali assistimos.

Quando, finalmente, estavam escolhidos os tecidos era tempo de tirarmos as medidas para nos fazerem o choli (blusa) à medida, a única componente do sari que requer costuras, o resto é pano solto e o segredo é a técnica com que nos envolvemos nele.

Ficaram de nos entregar os saris no hotel onde estávamos hospedadas daí a três ou quatro horas e assim foi. Ficámos ainda impressionadas pelo rigor com que os choli estavam confecionados, primorosamente forrados, com colchetes na abertura das costas e assentando que nem uma luva em cada uma de nós.

Foi a grande extravagância da minha viagem à Índia, a compra do meu sari de seda e não resisto a partilhar que custou cerca de 25,00€ com tudo incluído: o exótico espectáculo da escolha do tecido, o tecido em si, o chai, a prova, a confecção, a entrega e... mais uma história para contar.

9ABR2019


A CASA DE ADORAÇÃO BAHÁ'Í EM NOVA DELI

Também conhecida por Lotus Temple, graças à sua forma inspirada na bela flor de lotus, símbolo da pureza, a casa de adoração Bahá'í marcou o início da minha recente viagem à India.

A religião Bahá'í existe apenas há 175 anos e teve origem na Pérsia (hoje Irão). Professa a unidade da Humanidade, a origem comum de todas as religiões, a igualdade de oportunidades para homens e mulheres, o combate a todo o tipo de preconceito, a educação universal, a paz, o respeito pela ciência e pela investigação da verdade. Assim, de repente, é difícil não ficar logo, pelo menos, simpatizante.

Tenho de confessar que cheguei ao templo, construído na década de oitenta do século passado, e nunca tinha sequer ouvido falar sobre esta religião e, mais surpreendida fiquei, quando soube que o Lotus Temple é o mais recente de sete templos Bahá'í espalhados pelo mundo fora: EUA (Illinois), Uganda (Kampala), Austrália (Sidney), Alemanha (Frankfurt), Panamá (Cidade do Panamá) e em Samoa Ocidental (Apia). Os sete templos têm todos nove lados, por corresponder ao dígito mais elevado que simboliza, por sua vez, a unidade e a união, de resto, são todos muito diferentes... já fui espreitar as fotografias dos outros seis e posso assegurar que o mais bonito é o sétimo, o que foi construído em Nova Deli e este que eu tive o privilégio de visitar.

Construído sobre nove lagos artificiais que, além de elevarem a beleza estética diminuem a temperatura interior, o templo está rodeado por um amplo e cuidado jardim, cujos jardineiros, tal como todas as pessoas que trabalham ali, são devotos voluntários.

Antes de entrarmos no templo, somos convidados a tirar os sapatos e a fazer uma fila indiana (nunca melhor dito) até nos ser dada a indicação para avançarmos. Somos ainda instruídos a não falar nem fazer qualquer outro tipo de barulho, dentro do templo.

A beleza de tudo isto é que este templo, como os seus seis já previamente existentes congéneres, foi construído e está pensado para acolher toda a gente, independentemente das raças, credos ou religiões. Lá dentro não existe qualquer símbolo que remeta a uma religião específica. Existe uma área central, chamar-lhe-ia altar, e bancos corridos a toda a volta e, por trás dos bancos, a luz natural a entrar, sem pedir licença, por todos os lados. Mais nada.

Ali qualquer um se sente bem vindo e em casa, para se sentar e rezar, meditar, descansar, ou simplesmente estar e apreciar, em seu redor, a diversidade de pessoas, descaradamente de religiões diferentes, em silencioso respeito, numa harmonia e paz que me comoveu profundamente.

14ABR2019


ÍNDIA

Os primeiros momentos em que andamos a pé pelo centro de uma grande cidade indiana são avassaladores para qualquer forasteiro, milhares de pessoas, dezenas de vacas pachorrentas, carros e camionetas, bicicletas e riquexós, motas e tuctucs, tudo em todas as direções, num alvoroço de música e ininterruptas buzinadelas, numa miscelânea de cheiros intensos e de cores garridas. Depois, sem darmos por isso, começamos naturalmente a fazer parte daquele caos funcional e já tudo nos parece afinal harmonioso, inebriante e muito belo.

5MAR2019


PASSAGEM DE ANO

Pela primeira vez na vida passei o ano sozinha. Declinando delicadamente convites muito queridos, quer para partilhar o sossego, quer para festas de arromba, apeteceu-me experimentar uma novidade, logo ao nascer do ano. Deixei-me ficar em casa, vendo cada um sair para o seu compromisso, não sem antes se preocuparem com questões de idas e vindas, horários e outfits adequados.

Quando se fechou a porta pela última vez, comecei a gozar o sabor do meu atrevimento... quem, no seu juízo perfeito, escolhe passar o ano sozinho? Provavelmente somos muitos mais do que se possa imaginar. Também acredito que alguns solitários o sejam sem querer, por não serem convidados por ninguém, mas existe esta seita de solitários anónimos e voluntários que, pelo menos uma vez, experimenta a sua companhia só, quando a tradição quase proíbe que o faça.

Passei assim o ano, entretida e distraída, a escrever. O som do fogo de artifício sobre o Tejo alertou-me para a meia-noite. Levantei-me e fui à varanda espreitar o espectáculo mas na cabeça tinha apenas a frase que tinha deixado a meio e, enquanto dava voltas ao remate que lhe ia dar, sentia-me espectadora de uma emoção que não era a minha.

Está, provavelmente, na altura de confessar que a passagem de ano nunca me emocionou por aí além.

01JAN2019


GOSTAR DA PRAIA, DO MAR, DO PLANETA E DA VIDA

Parece que ultimamente existe uma maior sensibilidade para o problema da poluição, em geral, e dos oceanos, em particular. As redes sociais estão repletas de notícias, vídeos, movimentos e discursos de sensibilização em relação às toneladas de plásticos e outros resíduos não biodegradáveis que flutuam no mar, agredindo brutalmente o equilíbrio do planeta, matando animais e plantas e condenando inexoravelmente o futuro de todos nós.

Aproveitando o feriado lisboeta, fui hoje à praia com a minha filha e, antes da caminhada habitual à beira mar, tínhamos estado a falar duma campanha que incentiva cada pessoa que vá à praia a recolher três peças de plástico do areal. É claro que se toda a gente recolhesse três peças de lixo o impacto positivo seria colossal, mas sabemos que nem toda a gente vai aderir por isso eu disse-lhe que três peças, no mínimo, na realidade, não se devia estabelecer um limite.

Fomos a uma das praias menos poluídas do planeta, pelo que eu tenho visto de lixeiras por esse mundo fora. Mesmo assim, durante a nossa caminhada, de cerca de duas horas, não conseguimos deixar de apanhar todo o lixo que encontrámos - não contabilizámos mas ultrapassou a centena, cada uma! - e logo tivemos pena de não levarmos um saco para fazer essa recolha com mais conforto, em vez de ir constantemente deitar o lixo aos contentores que existem disponíveis, eu diria, a cada 100 metros.

"Para a próxima trazemos sacos", disse eu, ao que a minha filha respondeu num acesso de puro otimismo, " Oh Mãe, para a próxima já tirámos a maior". Risota pegada, claro, mas esse é o espírito: Acreditarmos que o que cada um de nós faz, faz mesmo a diferença. Não cair no marasmo de pensar que esta é mais uma causa perdida e que não adianta fazer nada.

Foi uma caminhada muito revigorante, com exercícios adicionais inicialmente não previstos, a agachar aqui ali e acolá. Estava pouca gente na praia mas nós esperávamos que quem nos visse se deixasse inspirar a fazer o mesmo quando fosse passear à beira mar.

Divertimo-nos à grande e ainda nos fartámos de rir. A certa altura estavam umas crianças a brincar com baldes e pás e formas mas estava tudo espalhado. Imaginámos logo a cena caricata de nós apanharmos os brinquedos para os levar para os contentores com as crianças a correr e a chorar atrás de nós.

Enfim. Não caiamos em exageros mas vamos lá fazer, cada um, o mais e melhor que pudermos. O planeta merece.

13JUN2018


FERNANDO

O resultado dos exames médicos não podia ser mais devastador. Cancro do pâncreas. Esperança de vida, menos de um ano. Quando me deu a fatídica notícia percebi que só o preocupava a minha reacção e, para me animar, começou a enumerar todas as vantagens de ter sabido a notícia com antecedência suficiente para organizar a sua partida.

"Repara Madalena, se eu morresse de repente, atropelado, por exemplo, não ia ter tempo para me despedir das pessoas que me são queridas, fazer pazes sempre adiadas, deixar os meus assuntos terrenos tratados de modo a não ficarem decisões por tomar, situações por resolver a pesarem a quem por cá vai continuar mais uns tempos. Na verdade tenho muita sorte."

Ninguém aguenta ouvir isto sem que o coração se desfaça em fanicos.

Ele tinha chegado a um acordo de reforma antecipada, pouco mais de um ano antes, com a empresa onde trabalháramos juntos. Sobre isto disse-me que só tinha que lhes agradecer terem-lhe proporcionado esse precioso tempo extra para fazer as coisas de que mais gostava, sair no seu veleiro para o mar, ler, ouvir música, estar com as pessoas que amava, viajar...

Umas semanas depois encontrámos-nos em Madrid. Eu tinha viajado por compromissos profissionais e ele apanhou um comboio em Córdova, onde vivia na altura com a sua namorada, para vir jantar comigo. Jantámos num restaurante escolhido por ele, muito bom e sofisticado e com as mesas suficientemente separadas umas das outras para que fosse possível conversarmos sem interferências. Foi, provavelmente, a refeição mais emotiva da minha vida.

Dez anos depois de nos termos conhecido, 8 dos quais a trabalhar juntos e os restantes, depois, apenas como amigos, ele em Espanha, eu em Portugal, durante os quais mantivemos as nossas cativantes, absorventes e profundas conversas por Email, ali estávamos nós, frente a frente, sob a invisível espada de Dâmocles.

Começámos a conversar sobre trivialidades, que não era a zona de conforto nem de um nem de outro, e sentimos imediatamente a artificialidade dessa tentativa patética de dar leveza ao ambiente que nos envolvia, até que ele exclamou: "O que me custa mais é, por exemplo, estar aqui a jantar contigo e não saber se vou voltar a ter outra oportunidade como esta" e vi, pela primeira vez, os seus olhos encherem-se de lágrimas, daquelas que não escorrem pela cara abaixo, daquelas que parecem uma brilhante camada sólida sobre o olhar.

Comovida, com um nó a sufocar-me e a arranhar-me dolorosamente a garganta, disse-lhe, surpreendentemente categórica e segura de mim, que ele podia ter a certeza que esta não seria a última vez que nos íamos encontrar. Falou-me então dos seus planos. Ia casar. Tinha encontrado, finalmente, tão perto do fim da vida, a mulher dos seus sonhos e desejos e fazia questão de casar com ela. Felizmente ela aceitou. "Pelo menos tem a garantia que não me vai aturar muito tempo" tentou ironizar. Apesar de não conseguir achar graça creio que consegui esboçar um sorriso triste. Iam passar a lua-de-mel à ilha da Madeira. No regresso pensava vender o veleiro e tratar de outros assuntos práticos e depois ir descansar para o sul, numa casa perto de Málaga, a ver o mar.

Depois do jantar, saímos para a noite madrilena, gelada e já com iluminações de Natal nesse início de Dezembro e caminhámos até à porta do hotel onde eu estava hospedada, à frente da qual nos abraçámos, silenciosa e demoradamente, e nos afastámos sem olhar para trás.

Mantivemos a nossa correspondência digital. Guardo, impressos, em papel e no meu coração, todos os e mails que trocámos durante os dez meses que decorreram entre a notícia da doença e o fim da sua viagem. Foi nesse período que subtil e delicadamente me sondou sobre os meus sentimentos relativamente a eutanásia, dizendo-me que não queria acabar a vida a definhar numa cama de hospital, num profundo e prolongado sofrimento, tanto para si como para os seus mais próximos.

Nunca se queixou de nada nas suas missivas digitais. Na altura eu também já estava a preparar a minha saída da empresa que, entretanto, tinha sido comprada por outra, muito maior, e ele queria saber como é que as coisas me estavam a correr, como estavam os meus filhos, quais eram os meus projectos. Sempre generoso, altruísta, muito amigo.

À medida que os meses avançavam, já depois de ter casado e da lua-de-mel na ilha da Madeira, da qual gostou tanto - e onde tanto prazer lhe deu ouvir falar português porque se lembrava de mim, escreveu a certa altura - fui percebendo que o tempo se estava a esgotar e que tinha de o ir visitar. A minha filha estava à procura de um destino para fazer Erasmus e foi a oportunidade perfeita: organizámos uma viagem a Granada, de carro, para avaliar essa possibilidade e, de caminho, fazer um desvio para visitar o Fernando, no seu retiro perto de Málaga.

Combinei com o Fernando, o dia, a hora e o ponto de encontro. Veio ter connosco de carro, sozinho. Deixei os meus filhos e fui com ele até sua casa, onde nos esperavam a sua filha adulta (de um casamento anterior) e a sua mulher, as quais eu não conhecia mas de quem já tanto ouvira falar. Ficámos uma meia hora no terraço sobranceiro ao mar, a conversar e a tomar café. O Fernando estava com o aspecto de sempre, talvez um pouco mais magro, mas com o mesmo sentido de humor e a mesma tranquilidade de sempre.

Depois levou-me de volta ao local onde tinham ficado os meus filhos, à espera. Fizemos esse trajecto em silêncio, conscientes da certeza que não nos voltaríamos a ver. Estacionou uns metros atrás do meu carro. Despedimos-nos sentados dentro do carro, com as duas mãos de um apertadas nas mãos do outro, com o olhar dentro do olhar do outro, um beijo em cada face e sem uma única palavra.

Saí do carro, entrei no meu e arranquei imediatamente. Desta vez não resisti e olhei pelo retrovisor e vi o Fernando pela última vez, ainda com o carro parado, a olhar para o meu que se afastava.

Poucos dias depois, de manhã cedo, ainda deitada, recebi uma sms de um amigo comum: "Fernando ha muerto". Foi então que chorei todas as lágrimas acumuladas, daquelas que escorrem pela cara abaixo, cheias e quentes, sentia-me órfã da nossa amizade, sentia que tinha perdido uma das pessoas que mais gostava de mim, não percebia ainda que, na verdade, um amigo nunca morre antes de nós porque deixa à nossa guarda tudo o que de bom soubemos partilhar.

Foi nessa altura que saí da empresa onde nos conhecêramos e no meu último dia, no último acesso ao meu email profissional, li o último email que me chegou. Vinha dos Recursos Humanos e dava a notícia da morte do Fernando que, embora já não trabalhasse na empresa havia uns anos, tinha sido aí uma figura marcante. Fechava-se um ciclo.

A sua mulher escreveu-me uns dias depois um email em que me contou que o Fernando não voltou a comer depois da minha visita, o que me impressionou muito. Impressionou-me ainda mais que ela me tenha dito que ele tinha esperado para se despedir de mim.

Passados mais de sete anos continuo a sentir muitas saudades deste meu amigo que tanto me ensinou sobre a vida, graças à sua sábia sensatez... aprendi com ele, por exemplo, que a felicidade depende, quase sempre, da nossa atitude perante a adversidade. 


PIU

Recebi agora a notícia que um cancro acabou de levar uma "miúda" que conheci há mais de 45 anos. Perdi-lhe o rasto há muitos anos e depois reencontrei-a graças ao quase sempre tão mal amado Facebook. Em miúda, talvez por ela ser uns anos mais nova do que eu, nunca lhe liguei o que provavelmente ela já mereceria, e dava-me mais com os seus irmãos mais velhos. Quando a reencontrei por aqui, descobri uma mulher muito interessante, de inquestionável sensibilidade, com uma apurada estética em tudo o que publicava e escrevia, cheia de pinta, a viver noutro país europeu, apaixonadamente casada e com filhas crescidas. Bela e feliz. Inspiradora. "Falámos" várias vezes por Messenger e prometemos inúmeras vezes uma à outra que nos iríamos reencontrar quando ela viesse a Lisboa. Por umas razões ou por outras, não chegou a acontecer. E isto é só mais um alerta, para mim e para quem na leitura tenha chegado até aqui: não adies o que queres fazer. Abraça hoje. Beija hoje. Diz que aprecias hoje. Amanhã é um tempo imaginário... nunca sabemos se vamos chegar lá.

23JUL2020


PAULO MARIA PAIVA RAPOSO PINTO LEITE

(FEV1964 - SET2022)

Conheci o Paulo, em Vila Nova de Milfontes, há 45 anos, quando corria o mês de agosto de 1977. Tínhamos ambos 13 anos. Foi nessa época que comecei a namorar o seu irmão mais velho, o Vasco e, a partir daí, e nos quatro anos seguintes, foram inúmeras as vezes que partilhámos, tanto dias de praia no Malhão ou na praia do rio, como tardes e serões na Rua Nova de São Mamede, em Lisboa, onde os três irmãos, faltava referir o do meio, o Tiago, viviam com a sua Mãe, a querida Tia Teresa.

Do Paulo guardo a memória de alguém com quem nunca tive o mínimo atrito, nem nos jogos de "king" ou "Mah Jong" mais aguerridos. Alguém munido de uma serenidade muito pouco comum, para a idade que tínhamos na época em que mais convivemos, um grande sentido de humor, que é sempre um sinal de inteligência, e uma autenticidade que não se consegue emular. Empático e simpático, para mim estar com ele era como estar com um irmão.

Ontem recebi com a maior tristeza e comoção a notícia da sua morte. Nunca estamos preparados para a morte de ninguém, muito menos a de quem fez parte das nossas vidas, e continuou sempre a fazer parte das nossas memórias e das nossas melhores recordações, que nos ficam, gravadas bem fundo, dos anos da adolescência e das grandes descobertas. Sendo nós da mesma idade, e vivendo na ilusão de que ainda tenho muito tempo pela frente, é dolorosamente chocante para mim que o Paulo já tenha partido para a dimensão seguinte, por ele, que com certeza deixou muitas coisas por viver e também por todos os seus mais próximos, que agora terão que adaptar a vida a uma ausência que nunca se pode colmatar.

Quando nos morre um amigo, morre uma parte de nós. Por outro lado esse amigo mantém-se sempre vivo, enquanto não for esquecido. E eu nunca me vou esquecer do Paulo.

Dedico esta memória à Tia Teresa e ao Tio Vasco. À Marta, ao Tiago e, finalmente, a quem ontem liguei, ao meu primeiro namorado, o Vasco, apesar de não ter tido nenhuma palavra de jeito para lhe dizer. Mas ele percebeu bem o meu atabalhoamento. Quando sobram as palavras.

4SET2022


12 de Fevereiro de 2022 - Um dia inesquecível.

(Parte I)

Preliminares

A saída do nosso autocarro, rumo a Madrid, estava marcada para as 4:45 da manhã, ou seja, para ir com tempo e sem contra relógios que sempre odiei, pus o despertador para as 3:30, o que foi estranhíssimo para mim porque quando estava no melhor do sono, e dos sonhos, começou a tocar o que me pareceu uma espécie de sirene de perigo e de emergência, ao mesmo tempo que se desvaneceram as ilusões e devaneios que o meu espírito tem tendência a construir quando o deixo à solta, sossegado e por sua conta. Assim que recuperei a consciência do que me habituei a assumir como realidade, sacudi imediatamente a moleza, e qualquer réstia de preguiça, porque estava a começar uma jornada que eu já previra ir-me ficar gravada, na memória, para toda a vida.

Preparada a mochila de véspera, recheada com uma marmita suficiente para duas pessoas, já que o meu irmão me vinha trazer e buscar e a nossa negociação foi a troca direta, foi só o tempo de tomar um duche, o pequeno almoço e um café até o Zé avisar que estava a chegar, às 4:00, tal como o previsto. Nascemos os dois com a mania da pontualidade, o que é ótimo, quando a combinação é conjunta, porque não há espaço nem para tensões nem conflitos.

Fomos dos primeiros a chegar ao ponto de encontro, de um grupo a rondar a meia centena, e depois foi aquela animação de vermos chegar uns e outros, quase todos conhecidos de outras andanças da resistência. Tudo gente muito esquisita que continua a beijar-se e a dar abraços, efusivamente, e que não há meio de adoecer, vai para dois anos já.

Quando já estávamos todos dentro do autocarro, o motorista, de microfone em punho, apresentou-se, deu-nos as boas vindas, informou-nos que o autocarro tinha ar condicionado e casa de banho e que todos os assentos tinham cinto de segurança, de uso obrigatório, pelo que a sua utilização ficava ao critério de cada um. Estava assim lançado o mote da nossa viagem de luta pela liberdade.


12 de Fevereiro de 2022 - Um dia inesquecível.

(Parte II)

O aquecimento

Com a sorte do nosso lado, o meu irmão e eu ficámos, com os lugares que escolhemos ao acaso, no autocarro, tão bem rodeados, que pouco depois de sairmos da zona da estação do Oriente, talvez a meio da ponte Vasco da Gama, já um de nós tinha inventado o termo "sit down comedy" para aquilo que se estava ali a passar. E foi um grupo de seis dos que a opinião pública apelida de chalupas, negacionistas, anti vacinas, anti ciência, teóricos da conspiração e de extrema direita, que enchia aquele autocarro, o responsável por termos feito a viagem, de mais de 7 horas, sempre a conversar e muitas vezes a rir, até se começarem a tonificar os abdominais: éramos a Sofia, a Xana, o Miguel, o Sérgio e os "manos Bastos" que é como o Zé e eu somos chamados, em alguns meandros desta perigosa resistência.

Estabelecemos logo de início um intercâmbio de conteúdos de marmitas que resultou numa espécie de piquenique sobre rodas, dá-me aí mais uma sanduíche, pega lá uma tangerina, quem quer um folhado de salsicha. E o Zé, sempre do contra, até caramelos levava, para Espanha.

Quando, logo no início, o motorista disse que durante a viagem faríamos uma única paragem, em Mérida e durante 45 minutos, eu disse que Mérida era bonita, com muitos vestígios do tempo do império romano, como se estivéssemos numa excursão turística e a imaginar 45 minutos para tomar um café e depois andar a ver as belezas históricas. Qual não foi o meu espanto quando reparei que o autocarro, já perto da zona de Mérida, saiu da autoestrada para logo a seguir estacionar numa estação de serviço. Aquela era a Mérida onde nós íamos ficar 45 minutos. E até isto, que não tem piada nenhuma, foi motivo para gozar comigo à grande, esse grupo de comediantes, se eu não sabia para onde ia, se me tinha enganado na excursão, o que é certo é que até chegarmos ali, a grupeta também não sabia que as bombas de gasolina e o café aberto 24/24 era tudo o que nós íamos ver de Mérida. Mas enfim, tudo para os fazer felizes.

O grupo todo saiu do autocarro e invadiu o até ali pacato estabelecimento, cujo pessoal deve estar muito habituado a este tipo de enchente repentina, e quando o amplo balcão em quadrado, na desafogada única sala do café, ficou cheio por todos os lados, os empregados, embora muito eficientes, mantiveram a sua calma olímpica, como se a casa estivesse às moscas. Depois fomos alguns para a esplanada, uns a dizerem mal da qualidade do café, outros a queixarem-se do seu preço exorbitante, outros a fumarem um cigarro e outros a fazerem tudo isso.

Ainda tive tempo de indicar um bom restaurante, em Estremoz, a umas espanholas, muito simpáticas, com quem me encontrei na casa de banho e que iam para lá, iniciando assim o meu mata saudades de falar castelhano, com desculpa para isso, e irritando depois durante toda a viagem e estadia os meus amigos, que diziam que eu tenho a mania que sou poliglota. Não percebem que isso faz parte de uma coleção de características peculiares que carrego: Tanto ser às vezes muito irritante como falar várias línguas, claro.

Os Filhos da Luta tinham uma surpresa, da parte do Dr Rui Castro, para todos os excursionistas: t-shirts para todos e à borla, da Habeas Corpus, e assim que um dos FdL colocou os sacos no chão, mesmo antes de entrarmos no autocarro para a última etapa da viagem, toda a gente se serviu e logo ali se equipou. Os que já tinham uma vestida, não tiveram direito a nada, como eu, que no início da viagem achei que estava com uma roupa tão original e a partir daquela altura já parecia fazer parte de um grupo desportivo.

E de "Mérida" até Madrid foi um tirinho, lá ia o nosso sexteto sempre a bombar, ao ponto de quando estávamos quase a chegar, perguntarmos se não podíamos dar uma volta extra à circular madrilena porque não queríamos que a viagem acabasse de tão divertida que estava a ser. Mas era a brincar. Era só para nos rirmos com mais uma das piadas que pareciam só nós estarmos a perceber.


12 de Fevereiro de 2022 - Um dia inesquecível.

(Parte III)

Se tudo fosse fácil... não daria tanto prazer

Chegámos a Madrid, à estação de Moncloa, cerca de duas horas antes do início da manifestação, previsto para as 16:00. O autocarro vindo do Porto, também carregado de lusos resistentes, ainda não tinha chegado, pelo que tivemos tempo para dar uma voltinha e desentorpecer as pernas de tantas horas sentados. Dividimos-nos por grupos, ao calhas, e combinámos ali voltar hora e meia depois. Dali saí num grupo de sete, menos um do sexteto de comediantes do autocarro e mais dois que se juntaram a nós, naturalmente. Calcorreados dois ou três quarteirões, encontrámos uma esplanada de esquina onde nos sentámos para beber umas imperiais uns e uns cafés, outros. Apesar de sermos um grupo pequeno, não passámos desapercebidos, talvez pela bandeira de Portugal bem à vista, talvez pelas t-shirts da Habeas Corpus que trazíamos vestidas. Fomos abordados por vários espanhóis que também se iam juntar à manifestação, vindos de outras cidades, visivelmente felizes por encontrarem ali portugueses e por isso muito calorosos, tratando-nos como alguém já da sua tribo. Eu, encantada, com a nova oportunidade para debitar mais castelhano, enquanto alguns dos meus companheiros já reviravam os olhos para o céu, como quem diz "por que no te callas", tudo muito pintalgado com piadas e gargalhadas.

Quando regressámos ao local de partida, para nos reunirmos com o restante grupo lusitano, caiu-nos a todos o coração aos pés. O Filho da Luta, responsável pelos excursionistas portugueses, disse-nos que o Dr Rui Castro lhe tinha ligado para avisar que não ia haver manifestação, porque a Câmara de Madrid tinha proibido a instalação do palco na Plaza Colon, onde estava previsto acabar a marcha e ouvirmos os discursos, por questões supostamente técnicas e ambientais, que traduzidas para linguagem corrente eram apenas um descarado boicote ao evento. Escusado será dizer que ficámos todos muito desapontados e que toda aquela energia e alegria desapareceram, tanto das nossas mentes como dos nossos semblantes. Não era uma questão de ter viajado em vão. Era mesmo a revolta de nos quererem silenciar, munidos do seu poder que nada tem a ver com a (teórica) democracia em que vive o decadente mundo atual.

Apareceu o Dr Rui Castro, que tinha viajado para Madrid na véspera por outros compromissos da nossa guerra, e levou o FdL seu braço direito neste contexto. Nós, os tugas, ficámos reunidos numa espécie de miradouro com vista para o Arco de la Victoria, à espera de notícias. À medida que o tempo passava iam-se juntando a nós, nesse local, cada vez mais espanhóis, para a manifestação, o que nos ajudou a recuperar o ânimo, apesar de serem cada vez mais também as carrinhas da polícia de intervenção. Ali estávamos nós, como óleo numa frigideira ao lume, quando apareceu de novo o Dr Rui Castro que, em cima de um carro de caixa aberta, informou toda a gente que a manifestação seguia em frente e íamos marchar os 9 Km que nos separavam da Plaza Colon.

Enquanto se começava a organizar a multidão, maior e maior a cada minuto que passava, apareceu diante de mim o Sérgio Tavares, que estava em direto no seu canal, para me fazer umas perguntas. Estava eu então no pico da emoção, por ter acabado de saber que afinal podíamos levar avante o que a Madrid nos tinha levado. E toda essa minha paixão, pela luta da resistência, ficou bem patente naqueles breves minutos da emissão. Os portugueses que foram a Madrid sabiam muito bem porque é que estavam ali. Fomos todos para lutar pela dignidade humana, cujo alicerce principal é o respeito pela liberdade individual.


12 de Fevereiro de 2022 - Um dia inesquecível.

(Parte IV e última)

APOTEOSE

E lá se foi organizando a multidão para se dar início à marcha, pelas amplas avenidas da capital espanhola, até ao culminar na emblemática Plaza Colon. Nunca tinha participado de uma manifestação como esta e foi uma experiência que jamais esquecerei. Entoavam-se palavras de ordem em castelhano e em português e todos tentavam adaptar-se a um uníssono que só vivido de tão forte e tão sentido. "Liberdade / Libertad" foi a palavra de ordem à que mais vezes recorremos. Levámos a Madrid o nosso "Pessoas como nós nunca desistem" e "O povo unido jamais será vencido" trouxemos de lá "En los niños no se toca" e o "no nos mires, unete" que dirigíamos aos transeuntes que nos olhavam estarrecidos, muitos deles sem saber sequer de que é que se tratava aquele alvoroço, que conseguimos provocar, pelas artérias da capital espanhola.

A marcha ia avançando, alguns carros no sentido contrário apitavam solidários, outros passavam sem olhar para nós, conduzidos por sozinhos de máscara posta, ou seja, também há de tudo por lá. Vimos uma senhora, na sua varanda, sozinha, de máscara, a espetar-nos o seu dedo do meio, e essa é mesmo uma imagem que dá pena. O que é que se passará naquela cabeça? Do nosso lado era tudo a atirar-lhe beijos e a sorrir-lhe embora, seguramente, não lhe tenha chegado nenhuma mensagem positiva. Parecia, esta pobre senhora, uma prisioneira na sua própria casa, onde seguramente guia a sua percepção do mundo pelo que lhe serve de bandeja a TVE.

De vez em quando parava o cortejo para se ouvir um discurso. Rui Castro e um juiz italiano foram passando as suas mensagens, traduzidas para castelhano, empoleirados no carro de caixa aberta que ia adiante de toda aquela gente. Nessa altura ainda não sabíamos o que iria acontecer quando chegássemos ao destino. A polícia foi acompanhando a multidão mas de uma forma muito pacífica e sempre educados quando, por alguma razão, nos dirigiam a palavra. Não sei quantos milhares de pessoas ali caminhavam mas era muita gente convicta e a transbordar boa energia.

Qual não foi a minha surpresa quando, ao chegar à Plaza Colon, tínhamos à nossa espera mais umas centenas de manifestantes a aplaudir, com as suas bandeiras e cartazes, e foi como se dois rios se juntassem para criar um imenso mar de ondas de esperança e de liberdade. A segunda surpresa foi ser possível ouvir todos os discursos que estavam inicialmente previstos, apesar dos condicionamentos provocados pelo "ayuntamiento" de Madrid. Ouvimos o Dr Rui Castro, tão mal amado no seu país graças à propaganda do Estado, e tão querido e respeitado, não só em Espanha como em inúmeros países onde existem cadeias de TV independentes que lhe dão voz. Ouvimos polícias, enfermeiros, médicos, professores, pais, biólogos, juristas, artistas, todos pela verdade e pela liberdade e vivemos um verdadeiro clímax de euforia quando ficou evidente que vamos vencer esta guerra e que a narrativa do Poder está mesmo por um fio.

Já eram 10:00 da noite quando demos por finalizada esta jornada de luta. Cansados e de corações cheios fizemos a viagem de regresso casa. Fiz a viagem quase sempre a dormir e os meus sonhos não vou contar, não venham ser eles confundidos com especulação. Mas posso deixar escrito que sonho que muito em breve, seja possível Lisboa sair à rua, com a mesma força, para ajudarmos os nossos compatriotas que ainda vivem no reino da fantasia transmitido pela TV e pelos jornais do regime, a saírem do alheamento e hipnose em que mergulharam há tanto tempo e sem darem por isso. "Pessoas como nós nunca desistem!"

E o relato de um dia mágico dá-se aqui por terminado.

© 2017 Madalena Lemos Bastos. Todos os direitos reservados.
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